Salvador acompanhava a destruição promovida pelas máquinas demolidoras, registrando as imagens com o seu telefone celular em fotos e filmes e enviando-as virtualmente ao pai. Sentia prazer ao trabalhar em atividades desse gênero, em especial quando à implosão os engenheiros preferiam o método mecânico, mais lento e duradouro. Nas semanas anteriores, junto a outra dúzia de operários, seguiu ordens de recolher grades de ferro, janelas de alumínio, telhas e coberturas de zinco, antigas e densas maçanetas, portas de madeira maciça bem envernizadas, fios elétricos, materiais que a empreiteira vendera para fazer caixa. Isso dera ao espaço uma aparência que o fazia se lembrar de Pripyat, a cidade-satélite de Chernobyl, pós-desastre nuclear, com seus esqueletos de prédios vazados, segundo vira em um documentário recente no streaming. Além disso, o processo de desconstrução homeopática para ele havia sido prelibação da etapa mais violenta do aniquilamento do lugar que afinal testemunhava. E ele podia jurar, enquanto tentava captar o fenômeno com seu aparelho telefônico, que cada impacto do maquinário pesado nas paredes dos prédios liberava um som que se assemelhava a vigorosos toques simultâneos de todas as teclas de um velho piano.
A freira estava sentada na segunda fila de bancos da capela vazia. A luz do fim da tarde atingia seu pequeno corpo debilitado filtrada pelos vitrais formados por quadriláteros irregulares, sobretudo azuis e brancos mas ocasionalmente vermelhos e amarelos, cujos resultados eram figuras abstratas. À sua frente, entre imagens de madeira de Jesus afagando de modo protetor uma criança e de Maria de Nazaré erguendo nos braços o seu menino, letras grandes destacavam-se na parede revestida de pedras São Tomé, iluminadas pelas velas sobre o altar de mármore, a formar a oração “o vosso espírito enviai, senhor”. Ela refletia, pela primeira vez, acerca da viagem contrária, agora que intuía a chegada do momento de o seu espírito peregrinar na finalidade de se entregar às mãos do Senhor.
Francesco mistura o cimento. Preparadas por outros operários sob sua informal orientação, gravatas de madeira dispostas em sequência abraçam gaiolas metálicas, para construir as colunas sobre as quais se apoiará parte do edifício a ser levantado. O sol agradável que lhe aquece o rosto de meia idade é oportuno, porque o temporal do início da semana provocou a cheia do rio que corta o bairro e, embora o terreno alto proteja a obra de enchentes, o episódio comprometeu os trabalhos ao dificultar ou impedir a chegada dos trabalhadores. Dizem que, desde que suas águas límpidas engoliram uma carroça com cavalo, carga e charreteiro como por encanto, os moradores desenvolveram profundo respeito pelo caudal, julgando-o mágico. Francesco não se impressiona com tais histórias. Trabalha com concentração e habilidade prática. Apresenta-se como pintor, desenhista e artista (na esteira do falecido pai, artesão especializado nas áreas de ferraria e serralheria), não obstante os registros oficiais, os quais não sabe ler, designarem-lhe o ofício de pedreiro. Com frequência, redesenha as plantas dos projetos para adaptá-las às necessidades inesperadas que surgem no decorrer das construções, o que não raras vezes é acatado pelo mestre de obras. Tivesse alguma formação acadêmica e poderia ascender a funções de maior prestígio, assemelhando-se aos antigos capomastri da sua Itália natal.
A freira saiu da capela usando a porta de trás. Caminhava com dificuldade, por conta de um defeito na coxa esquerda que tinha desde que nasceu e que tornava uma perna um pouco menor do que a outra. Em um hall anexo fechado, havia uma escultura de gesso representando o tema da Pietà. Tinha como evidente inspiração a consagrada versão de Michelangelo, que ela admirara na única vez em que estivera no Vaticano, pouco antes de a sua congregação enviá-la ao Brasil, ainda muito jovem, não mais do que uma menina adolescente. A imagem convocava as irmãs à sua missão piedosa. Ela comparou a figura com a que estava no altar, admirando-se com o fato de os mesmos afetos poderem ser representados sob emoções tão distintas. Pensou, enfim, que os braços da mãe são o maior consolo, nem sempre possível, à hora da morte. Deus é pai, ponderou, e Deus também é mãe.
Salvador usava o martelo pneumático para o acabamento fino da destruição em que se empenhava, extinguindo tudo o que sobrevivesse às máquinas de grande porte. Antes desse serviço, nunca havia entrado no local, embora residisse bem próximo. Mesmo após a instituição de ensino deixar de ser um internato exclusivo a moças com formação para o magistério e passar a oferecer turmas mistas de primário e ginásio, seu pai, viúvo muito cedo, nunca gozara de poder aquisitivo para ali o matricular. Lembrava ele algo vagamente, contudo, de na infância, logo que aprendera a ler, e sempre que passava em frente à escola e identificava seu próprio nome no letreiro ao alto por trás das flores do jardim, imaginar-se dono daquele lugar onde umas mulheres viviam vestidas de pinguim. Absolvia a criança desse virtual sacrilégio a absoluta falta de formação religiosa que tinha então. Olhava apenas por fora aquele conjunto arquitetônico que se desenvolvia em platôs acompanhando a rua lateral em aclive e fantasiava o seu interior como um castelo do qual fosse o rei.
A freira, sempre mancando, num caminhar habitualmente difícil mas cujas limitações eram potencializadas pela idade avançada e o seu já depauperado estado de saúde, deslocou-se até a pequena varanda que se estendia à lateral da capela. Encontrava-se ela no segundo andar da base interna do U, aproximado formato que o conjunto predial apresentava em sua distribuição no terreno da escola, se observado dos céus. O domingo suscitava silêncio. Admirou o pequeno jardim que se destacava logo abaixo, no térreo, com uma vegetação delineada a tesoura e a ascensão do perfume suave das azaleias cultivadas pelas próprias irmãs, tudo cercado por um gradeado baixo. À frente das flores, estendia-se, seguro e exclusivo como o Paraíso na Terra (uma vez que abrigado pelos dois braços de prédios cinquentenários que lhe cercavam por ambos os lados) um vasto pátio aberto.
Francesco distrai-se por um momento com a chegada do padre da paróquia do bairro e três freiras, que vieram acompanhar a fiscalização da obra. Ele sabe desde há poucos dias que a arquidiocese do município cedeu o terreno ao projeto da congregação europeia de fundar uma escola de caráter confessional naquela cidade. A escolha é estratégica porque a freguesia, ainda formada sobretudo por chácaras arborizadas em que circulam as águas naturais mas também as encanadas, está em boa ascensão desde que passou a ser cortada pela via férrea, ganhando dessa forma importante estação e sendo ademais a primeira do subúrbio da capital federal a receber energia elétrica — aliás, a própria construção da igreja matriz foi catalisada por tais fatores. Ele então observa a mais jovem das religiosas, uma noviça que não passa de uma menina e parece claudicar um pouco da perna esquerda. Pensa, então, em Maria Santa, que tem idade próxima à da freirinha. Não devia ter expulsado a filha de casa. Recuaria da decisão, caso soubesse seu paradeiro. Mas a notícia da gravidez logo após a morte da esposa assaltou o homem em momento de descontrole. Reconhece que sua atitude foi também um golpe violento para Maria Santa, que de alguma forma perdera o pai logo após sofrer a perda efetiva da mãe. Olha de novo a freira e projeta-lhe a filha. Corre a notícia de que jovens moças parentes dos operários da obra terão assento gratuito no internato, caso desejem a formação de professora. Seria uma enorme oportunidade para ela, se o estado de pecado em que se encontra não impedisse qualquer sonho em um ambiente rigorosamente puro e sacro como aquele.
A freira observava da varanda o pátio da escola, revestido por placas hexagonais de cimento. Bancos de alvenaria em sequência fechavam quadrados de onde se erguiam convidativas árvores. No ponto médio aproximado do átrio, uma passagem elevada unia, na altura do segundo andar, os dois lados da edificação, abreviando pontos no espaço e no tempo. Ao fundo, quase no limite do terreno, próximo ao muro mediano que margeava a rua lateral em aclive ao longo da qual se desenvolvia o colégio, sobressaía uma árvore mais antiga e frondosa que as demais. A própria freira participara do seu plantio, ainda muito jovem, na época da construção dessa instituição de ensino que era o seu lar. Poucos metros antes, à esquerda, o pátio estendia-se por baixo de parte do edifício, suspenso no ar por uma sequência de colunas formadas por grandes pedras de aspecto rústico, uma espécie de pilotis que vinha conferir ao projeto arquitetônico certa ousadia visionária, dado o tempo de sua materialização. À imagem de tais pilastras, era como se braços vigorosos de Deus erguessem a construção do chão e abençoassem a todos com amparo contra intempéries — antes, agora e na hora da morte.
Salvador seguia recolhendo o entulho, vestígios mortais da antiga civilização escolar. A vizinhança apiedava-se pelo fechamento do colégio que estivera ali por tantas e tantas décadas. Muitos, como ele, nunca puderam frequentar o espaço entre os seus altos muros, mas se orgulhavam da composição centenária que se exibia por trás da bem recortada vegetação num nível acima da via principal do bairro. Além disso, alguns moradores, mesmo nos últimos tempos mais declinantes, viviam ainda de um comércio que lhe era em certa medida dependente, de papelarias a livrarias, de carrocinhas de rua a lanchonetes ou restaurantes, de serviços de fotografia a organização de eventos, de estacionamentos a guardas informais de carros. Mas o fechamento daquela escola somava-se à concordata de uma universidade local e à transferência da grande fábrica de açúcar para espaço com logística mais adequada ao escoamento da produção, episódios que já haviam espalhado o desemprego, reduzido a circulação de capital e contribuído para a decadência da área. Vários vizinhos seus, atualmente, na antípoda do mercado de trabalho tradicional, contratavam uma empresa para ter emprego de motorista ao invés de serem contratados por ela. E tudo agora parecia em ruínas no bairro fantasmagórico e mesmo a tradicional paróquia esvaziara, na perda de fiéis para religiões concorrentes que se multiplicavam e os dividiam, dentre as quais a que parcialmente convertera Salvador. E o único empreendimento que se espalhava com igual sucesso pelos arredores eram os prostíbulos, a que ele também se convertera, nesse caso mais de corpo do que de alma. O fato é que Salvador não comungava com os lamentos, quase comoção em alguns casos, dos demais moradores do entorno no que diz respeito à falência do velho colégio religioso: era a primeira vez em que ele gozava de alguma remuneração motivada por aquele findo espaço escolar e, além disso, o interior do lugar, ao menos segundo havia idealizado em sua tenra idade, tinha, há muito, como ilusões outras suas, sido demolido dentro de si.
A freira ansiava por se despedir do seu Colégio Nosso Senhor Salvador, internato que formava moças para o exercício do magistério ou de práticas comerciais. Sob o absoluto impedimento de alcançar com os olhos todos os seus espaços em simultâneo, pensou que o poderia fazer com a voz ou com algo que valesse isso. Foi com tal intuito que desceu, com os impedimentos de sempre, lances de escadas de mármore escrupulosamente limpas e, uma vez no andar térreo, tomou como caminho derradeiro seu o lado esquerdo do prédio.
Francesco pega no bolso frontal esquerdo da camisa uma diminuta joia e recorda Esmeralda, a segunda filha que teve com a recém-falecida esposa. A pequeníssima pedra em suas mãos é valioso presente que seu irmão primogênito, mais bem sucedido porque já chegou escolarizado da Itália e padrinho da menina, deu em seu nascimento, o qual ela passou a usar no pulso desde o batizado. Também a caçula ensejaria ali bom futuro, se a epidemia de bexigas não a tivesse fatalmente vitimado aos dois anos de idade. Ele acaricia entre os dedos a imaculada gema que traz consigo de modo inseparável desde o fatídico dia. Sendo homens os demais filhos, Francesco conclui que aquela instituição não é destino dos seus. Não pode mesmo ele prever que, quatro gerações mais tarde, uma descendente de terceira geração — que nunca chegou nem mesmo a saber o seu nome por ser da linhagem de Maria Santa, a filha que ele nunca mais viria a encontrar — conquistará uma colocação como professora nesse educandário e nele matriculará o único filho. A joia verde faz o homem lamentar que sua inabalável saúde o tenha feito resistir em lugar da pequena e linda criança cujo rostinho foi arrebentado pela moléstia. Sua então pretensa imunidade a doenças soa como maldição divina. Não pensaria assim caso antecipasse que, em menos de dez anos, ainda que passando também ileso pelo tempo da gripe espanhola, teria um pouco mais tarde sua pretensa rijeza afinal vencida pela tuberculose.
A freira, caminhando por um corredor, deixava para trás a cozinha, de onde surgia o cheiro da sopa que engrossava ao fogo e das batatas que cozinhavam, e o grande refeitório, ainda vazio à espera das meninas e das irmãs para a ceia, que não tardaria a ser posta. No lado contrário, as grandes janelas expunham de modo intermitente, ao ritmo dos seus passos lentos, o pátio que ela antes observava do alto. Tomou um corredor que contornava o refeitório e desceu outro à direita, menos iluminado em razão da ausência de fenestras. Em frente ao laboratório, ficava a sala de História Natural. Entrou.
Salvador destruía o que restara das bases de antigas e largas pilastras do pátio, revestidas de pedra. As próprias placas finas que lhe forjavam a solidez haviam sido retiradas previamente, sob igual finalidade de revenda. Conduzir o equipamento era algo como domar um cavalo selvagem. Interrompeu o serviço na terceira coluna para descansar o corpo da trepidação. O sol queimava impiedoso o seu rosto curtido, que sugeria que seus quase cinquenta anos fossem mais de sessenta. Do calor intenso procedia a ameaça de tempestade no fim do dia, o que sempre fazia transbordar o valão que corta o bairro. No último verão, ele perdera vários eletrodomésticos e móveis e seu velho pai adoecera. Enxugou a testa e olhou para baixo, protegendo os olhos da luminosidade. E, em meio aos escombros finais do pilar, parcialmente preso ao concreto, viu despontar algo que brilhava à luz do sol. Verificou se não havia ninguém próximo, retirou do cinto o martelo e o ponteiro de aço e acocorou-se. Em segundos, retirou dali uma correntinha deteriorada, mas provavelmente de ouro, na qual uma pequena pedra verde-escura exibia ainda alguma beleza apesar das muitas rachaduras que magoavam a face da joia. Guardou-a logo no bolso, avaliando que talvez conseguisse algum dinheiro por ela no centro da cidade. Com um pouco de sorte, poderiam, o pai e ele, por fim migrar daquele decadente bairro.
A freira estava numa sala de alto pé direito e de madeira acanelada, incluindo as janelas-guilhotina sólidas e amplas, o piso de tábua corrida que subia até o fundo em largos degraus ascendentes onde se distribuíam as carteiras escolares e os armários fixos que cobriam duas paredes inteiras. Nesses, as portas de vidro exibiam minérios diversos, anfíbios em formol, aves empalhadas e mesmo um frasco que conservava um feto perdido. Ao lado da porta, por falta talvez de outro espaço mais adequado que o abrigasse, estava um piano vertical. Ela sentou-se na banqueta, ergueu com dificuldade a tampa do teclado e começou a tocar. Após uma vida dedicada a Deus, considerou que se poderia conceder uma música de temática leiga. Por isso, ao escolher Franz Schubert, modo de trazer aos dedos a Áustria da sua infância e a Viena que foi seu berço, não optou por sua afamada Ave Maria. Fossem talvez sua mais antiga lembrança, e ali preferia se asilar, as performances de sua mãe na execução de Der Doppelgänger acompanhada da voz do seu pai, na privacidade familiar. Sem o componente vocal, as notas chegaram espaçadas por breves silêncios em todos os cantos do colégio: o jardim frontal e o interno, a entrada lateral, o viveiro de araras, a área do terreno ainda com vegetação nativa repleta de gambás, o alojamento das alunas, a quadra de voleibol das meninas, o centro de eventos cívicos e religiosos, a clausura das freiras, a biblioteca, o pátio. Nas notas que exigiam vigor, recolheu quase toda a força que lhe restava para lhes conceder tanta intensidade que penetrassem as paredes e nelas se retivessem vibrando até o fim dos tempos.
Francesco prepara-se para despejar o concreto em mais uma gravata de madeira. Já está no terceiro pilar. Constata que as religiosas se distraem junto ao muro baixo de pedra quase no limite do terreno. Demora a entender que plantam algo, talvez uma horta, mais provavelmente uma árvore. Comove-se com a jovem freirinha manca que se abaixa com dificuldade para colocar as sementes na terra. Aproveita que ninguém o observa e, antes de derramar a mistura de cimento, areia e brita, deixa que se precipite ao fundo a pequena esmeralda presa à correntinha de ouro. Experimenta esse novo sepultamento como se revivesse o mesmo luto, mas então em um plano puramente simbólico, diferença que não racionaliza, apenas sente. Ele mesmo será o responsável por fazer todo o acabamento artístico das pilastras, da base ao capitel, passando pelas colunas. Enquanto proceder a colocação das placas de pedra rústica, cuja solidez legará ao espaço vocação para exclusiva eternidade, sentirá o consolo de que, enfim, uma vez que esteja resguardada entre as rochas e protegida de toda e qualquer moléstia, Esmeralda, a perpetuamente pequenina Esmeralda, terá assento perene naquela prestigiosa instituição de ensino. Ali, seu futuro não terá termo.
A freira, após deixar a sala do piano e ignorar a larga escada em L que levava de volta ao andar superior, alcançou a saída, uma passagem que desembocava na fração coberta do pátio. Na porta dupla de madeira, um gradeado de ferro que protegia o visor retangular de vidro fosco desenhava o ícone da sua congregação. Despediu-se com gratidão, num leve toque dos dedos. Caminhou, com gradativo sacrifício, em direção às pilastras. As alunas e as demais freiras do convento-escola, atraídas pela música incomum que tomara o internato, desciam a escadaria em L e a avistavam, já antes mesmo de cruzarem a porta. Na altura da terceira coluna, a freira não teve mais forças e ali se apoiou com a mão direita. Deus é pai e Deus também é mãe. Sentou-se pois ao chão, as costas no pilar, e expirou, consolada no piedoso braço de pedra.
Comments