“[...] nous pouvons dire enfin que, faisant œuvre d’art,
il nous ressemblait, qu’évidemment, c’était notre semblable.”
(“La naissance de l’Art”,
Georges Bataille)
Assistia a películas nas salas escuras da cidade em torno de cinquenta vezes por ano, enquanto em outros espaços, incluindo sua casa, não se lembrava de ver filmes suficientes que pudessem preencher uma mão, caso usasse dedos para os enumerar. Daí que as sequentes pandemias, provocadas por vírus causadores de doenças muitas vezes mortais a se propagarem no ar e de modo acentuado em lugares fechados em que houvesse humanos contatos, tivesse removido da vida de Magdalegne um componente mais importante do que ela mesma pudesse julgar a princípio ao impedir que frequentasse cinemas.
E-hai entregou todos os ossos de E-eh, pintados agora de vermelho, para que os outros homens voltassem a sepultá-los. Julgava assim que, dessa vez, o mestre receberia a mensagem e retornaria para conversar com o rapaz, que tinha, para o bem de todo o grupo, a urgente necessidade de estar com ele.
Ao contrário de muitos, Magdalegne passou a gênese desses tempos pandêmicos conversando consigo a argumentar acerca das justificativas para saídas de casa, concluindo que, dado o risco de contaminação, nada do que não fosse necessário à alimentação ou à saúde física pertenceria à esfera das essencialidades, incluindo certas experiências culturais. De toda forma, nos momentos mais agudos da crise sanitária, os cinemas, tais quais outras casas de entretenimento como teatros e arenas de espetáculos musicais, ficaram longo tempo fechados. Mas, em intervalos, sob aparente amainar de atividades viróticas, houve tentativas de reabertura, o que jamais a encorajou a arriscar a saúde. Rápido, contudo, desses ensaios decorreram novos e significativos focos de moléstias, o que se manifestou tantas vezes que a existência de tais estabelecimentos foi classificada como grave ameaça à saúde pública e se deliberou por suas extinções ou ao menos um encerramento por longuíssimo prazo, com vaga promessa de retomada.
E-hai ainda lembrava com afeto da antiga presença de E-eh. Observava com um sentimento de tristeza o retorno à sepultura dos ossos que foram seus, distribuídos com apuro para que se mantivessem na cova em sua organização natural. O mestre estava enterrado sob as tundras, que pareciam agradar aos seus olhos quando vivo porque ficava longo tempo acocorado, a se agasalhar sob a pele de urso, sentindo o forte vento gelado que balançava as gramíneas e os pequeníssimos arbustos até a luz desaparecer. Era difícil entender a sua morte. Embora de tempo mais avançado, não teria ainda a velhice normal do perecimento, mas enfraqueceu e se esgotou de modo repentino, como alguns outros membros do grupo, numa espécie de maldição que interrompeu a trajetória natural de uns mas poupou outros, sem explicações possíveis, embora muitas alternativas tenham sido elaboradas pelos iluminados curadores.
Houve um ímpeto inicial, Magdalegne lembrava bem, de contratar assinaturas em plataformas de filmes para se ver em casa. Depois, alguns clientes buscaram se adaptar a uma romantizada oferta vintage do cine drive-in, mas ela não tinha automóvel nem carta de motorista (julgava, ademais tratar-se de algo meio desumanizador, quando via os veículos com os faróis oculares a simularem audiência como se humana fosse) e, ainda que tenha se rendido à compra de um pacote de streaming, nunca conseguiu se interessar por nada naquele suporte, já que era como se o conteúdo não se ligasse à forma e, quando o fazia, alguma aura original se perdesse. Sua busca por narrativas de ficção limitou-se ao contato com a literatura, recusando a mais recente das artes e se conformando com a sua agora constatada efemeridade: ao que tudo indicava, mesmo que no tardar de quase dois séculos, era com sensatez afinal que algum Lumiére teria dito a Méliès, segundo se contava, que o cinema não passava de uma invenção sem futuro, uma transitória curiosidade.
E-eh tinha muito a ensinar e E-hai precisava ainda aprimorar suas habilidades. Partiu cedo o mestre, quando ainda não estava completa a formação do escolhido discípulo, que era pouco mais do que um menino na ocasião da perda e cujos esforços para assumir as funções com precocidade nem sempre trouxeram os resultados esperados, de modo que os alces, por vezes, escapavam dos caçadores com mais frequência do que acontecia no tempo em que o ofício era executado por E-eh. O líder do grupo já parecia disposto a aplicar castigos, caso o problema não se resolvesse. O mais velho havia sido habilidoso, sabia de tudo, mas E-hai seguia inexperiente. Especulava que talvez o mestre estivesse sepultado em lugar errado e devesse ser transferido para o santuário, próximo ao seu trabalho, que era o que de verdade ali o eternizava. E-hai perguntaria, caso o encontrasse mais tarde, se a mudança de local dos ossos era um desejo seu. Ou deveria proceder logo a transferência para assim estabelecer o contato? Não encontrava resposta. Lembrava apenas, e não deixava de pensar nisso, que E-eh, enquanto se esforçava para continuar a obra até o instante em que teve forças, dizia que aqueles desenhos afinal o permitiriam continuar em contato com o mundo após a sua partida.
Outros espectadores havia que não se compraziam em assistir aos filmes em casa e não aquiesceram com o mesmo conformismo de Magdalegne. Ademais, a literatura era à época uma arte em franca decadência se comparada ao alcance do audiovisual e, para uma maioria em que se enquadravam pessoas sem essa formação leitora pré-pandemias, os livros não podiam mesmo compensar a ausência dos cinemas. A proibição estatal, dessa forma, como todo desejo que é tornado ilegítimo, provocou o nascimento de sessões clandestinas, cujas entradas para filmes produzidos de modo ilegal, vendidas em mercados secretos (poderíamos mesmo dizer que traficados), não continham nem hora nem data nem local dos eventos e ninguém sabia ao certo como o público alcançava as praças de exibição — “praça”, aliás, é nomenclatura que nem como metonímia manteria ainda algum honesto rigor semântico. Ela, contudo, não ousava. Era perigoso, tanto que a prática já vitimara de modo fatal alguns clientes, pela contaminação viral gerada nesses lugares ou sobretudo pela repressão policial que não perdoava quem se envolvia com esses ambientes mafiosos e seguia a ordem governamental de atirar para matar.
E-hai precisava que E-eh lhe dissesse onde estava falhando em seu procedimento: se a pedra que entregava aos caçadores para que perfurasse o corpo dos alces não estava talhada da forma correta ou se a representação do animal na parede da caverna é que não era exata o suficiente. Quanto a isso, sabia como realizar os traços e colorir o seu interior, mas nunca pôde desenvolver o talento do mestre de usar as saliências e irregularidades do relevo das rochas para forjar as formas reais do animal em todas as suas dimensões, escolhendo lugares específicos da caverna em que a luz completava o efeito de realidade no horário preciso da caçada.
Anos e anos pestíferos concederam gradativa diminuição da periculosidade das doenças à medida que os vírus (não — que evidente fique — por volições próprias, mas num processo natural de adaptação) encontraram modo de conviver com seus hospedeiros sem os matar em larga escala. Foi quando costumes de um mundo já considerado antigo puderam pouco a pouco ser resgatados. Mas as exibições de filmes a grande público se mantinham interditas. Outras atividades liberadas mais cedo aproveitavam-se de suas antecipadas reestruturações financeiras para comprar antigas salas de cinema em abandono, como os cassinos e bingos e notadamente os empreendimentos religiosos. Nunca, por exemplo, tantos espaços antes ocupados pela cultura se transformaram em tantos templos (de diversas denominações de uma quase mesma crença), os quais, por ironia, tinham liberação para apresentar a devotas plateias narrativas de pretensão não ficcional, filmes projetados em grandes tecidos ou encenações com atores em palcos. Ocorre também que, habituados à redução da audiência aos pequenos ecrãs dos aparelhos telefônicos móveis, que além de tudo subtraíam a necessidade de detalhes precisos de cenários grandiosos ou maquiagens de elenco, os grandes estúdios, mais do que adaptados, tinham feito vultosos investimentos nessa nova forma de produção e criado aplicativos próprios que dispensavam da divisão de lucros distribuidores e exibidores, de maneira que a tela grande não mais se viabilizava do ponto de vista econômico. Além disso, a influência política dessas plataformas que vendiam conteúdo por demanda, alcançada quando se tornaram importantes patrocinadores de campanhas eleitorais, motivou a permanência das proibições, que afinal garantiam a manutenção de sua base de clientes. E era notório que a capacidade de reunião que as salas de cinema envergavam, em contraste com o consumo solitário do streaming, era francamente subversiva e, por isso, não agradava a poderes estabelecidos que a prática ressurgisse. Foi nessa época que Magdalegne percebeu que outros empenhos que não mais uma proteção contra ameaça virótica mantinham interditos quaisquer ambientes de socialização cultural e ela então se atreveu a ter interesse pelos secretos cinemas clandestinos de que ouvia falar como de uma lenda, apesar dos aparatos policialescos que sabidamente os combatiam com brutalidade.
Por isso, nesse dia, E-hai não foi dormir na companhia dos demais do grupo, mas se dirigiu sozinho ao santuário. Na entrada da gruta gelada, acendeu o fogo e se deitou ao lado das chamas. Perto daquela mesma fogueira, ouvira de E-eh muitas (mas nunca suficientes) histórias de tempos mais antigos, que haviam sido contadas pelos mais velhos que o mestre conhecera quando muito novo. Alguns, da mesma geração sua mas que sobreviveram à maldição, diziam que não eram reais essas narrativas. E-hai, contudo, não admitia que dissessem que o mestre contava mentiras. E-eh era um homem sapiente. O rapaz olhava, dentre os desenhos na parede, aqueles feitos por ele mesmo quando aprendiz e, sob pacientes instruções, corrigidos por E-eh. Observou o material por algum tempo, esperando tudo entender, como se pudesse adivinhar o que lhe diria o mestre dos seus ainda persistentes falhanços, segundo demonstravam as experiências mais recentes que resultavam nas fugas de muitos alces. Olhou para os dedos das mãos e pensou que, se não fizesse um bom trabalho, não tardaria para que o líder do grupo o condenasse à perda de alguns deles, como testemunhara fazer com um iluminado cuidador que não salvara da maldição uma das suas mulheres mais próximas.
Não foi, porém, fácil, desvendar como operavam os traficantes de ingressos. A repressão estatal era intensa e levou alguns anos ainda para que Magdalegne descobrisse contato que a levasse a adquirir um bilhete todo branco, picotado dos dois lados, com apenas duas informações impressas: A Idade das Renas — presumível título do filme cuja sinopse era impossível levantar — e Cinesauropteryx — certamente o nome do estabelecimento. O local em que deveria estar, à exata e irrevogável meia-noite, foi fornecido apenas verbalmente. Parada na esquina vazia de uma rua escura distante de vias principais, ela não percebeu nenhum movimento até que já tivessem colocado um saco escuro em sua cabeça e, em absoluto silêncio, transportado seu corpo sem resistências a um espaçoso veículo, talvez um ônibus, onde percebeu, pela respiração apenas e não por qualquer palavra, que havia outras pessoas. Chegou a temer ter sido capturada pela Polícia de Repressão Cultural. Só teve direito à retomada da visão quando, mais de hora e meia depois, após a retirarem do carro e a conduzirem com gentileza por estreita porta, sem nenhum acesso mais a qualquer elemento do mundo exterior, Magdalegne já estava no hall interno de entrada do cinema.
E-hai admirava um bisão vermelho cujo traçado das patas sugerindo movimento havia sido corrigido por E-eh para uma posição de inércia que o impediria de fugir dos caçadores, multiplicando assim, na figura final, os seus pés possíveis. De súbito, uma chama mais alta se desprendeu da fogueira e tremulou entre seus olhos e o desenho na pedra. E E-hai, no jogo de luzes que destacou ora uma ora outra pata sequencialmente, teve a nítida sensação de que o bisão saíra em carreira. Levantou num salto para o agarrar, mas deparou-se com o pequeno animal novamente em repouso, preso à parede, cheio de patas fantásticas. Foi o movimento real? Era aquele bisão real? Se não fosse, o que seria?
As centenas de luzes muito amarelas, a refletir nos tapetes e nas paredes aveludadas vermelhas, cegaram-na por uns instantes. O espaço art déco era imenso, bastante duvidoso que se mantivesse oculto por mais inábeis que fossem as forças repressivas que deveriam, pois, ser mais brutas do que inteligentes. À entrada, que ficava num patamar superior próximo ao teto abobadado e oferecia como primeira visão um enorme lustre de cristal que devia pesar toneladas, duas largas escadas contornavam à direita e à esquerda todo o salão até desembocar cerca de seis metros abaixo, no lado oposto. Desceu com cuidado cada íngreme degrau, onde o tapete era fixado por roldanas metálicas douradas com aparência de serem muito novas. No andar inferior, havia qualquer coisa que antigos cinemas ofereciam: de uma grande pipoqueira muito clássica ao lado de um funcionário uniformizado com elegância a um pequeno café-livraria com literatura especializada que guardava, como a torre de uma abadia medieval, toda publicação que comprovava que um dia a arte cinematográfica existiu.
E-hai desceu para o fundo da gruta, onde havia uma cave mais ampla e totalmente escura. Ali, se deixaria adormecer. Esperava dessa vez ir ao encontro de E-eh, no local correto em que ele estava. Há muito que, toda noite, viajava sempre para o mesmo espaço estranho. Era frustrante. Não se interessava por aquele outro lugar, tinha na verdade muito medo dali. Mas guardava esperanças de que o ritual de pintar os ossos de E-eh — que havia dado certo com outros, dizia-se — permitisse afinal que o mestre compreendesse o chamado e lhe concedesse entrar em sua morada atual, como fazia com muito mais frequência logo que partiu. Em que momento afinal teria ele concluído que E-hai não carecia mais de sua presença? Muito ansioso ainda, porém, E-hai não conseguia obrigar seus olhos a se fecharem, mesmo no absoluto breu do fundo da caverna.
Maravilhada que estava, Magdalegne não adquiriu nada para alimentar o corpo ou a mente. Viu que as pessoas tomavam pequenas passagens espalhadas por todo esse patamar inferior e, curiosa, seguiu de imediato por uma delas. Encontrou, surpreendida, ambiente por completo distinto; era uma galeria de pedra, literal caverna, iluminada com esforço por pequeníssimos archotes que expunham nas paredes vermelhos e ocres desenhos pré-históricos abstratos e não figurativos. Seriam genuínos? Caminhou por ela longamente, sempre para baixo, encarando bifurcações e se perdendo pelas galerias cada vez mais frias. No caminho, homens e mulheres muito altos e cabeludos, de rostos compridos com belos traços e vestindo peles de animais, com certeza atores produzidos com competência, fugiam para as profundezas mais escuras a cada aproximação. Desembocou numa rotunda principal de tamanho imensurável e temperatura congelante, onde presumia que todos os outros caminhos também chegariam. E ali estava a enorme tela de mais de mil e quinhentos metros quadrados em frente a vários patamares de assentos que deveriam contar próximo de quatro ou talvez cinco mil lugares, com a lotação quase esgotada. Correu para pegar uma boa cadeira e alcançou uma mais ao fundo — mas significativamente central — no mezanino intermediário. Deixou-se por fim afundar na poltrona vermelha de maciez incomum, com um pequeno abajur à sua direita. E ficou a observar o teto da grande caverna repleto de pequenos desenhos de estrelas cujo conjunto envolvia uma lua antropormofizada com um dos olhos atingido por um módulo espacial julioverniano.
Por vezes, E-eh elaborava questionamentos sobre essas viagens noturnas. Seriam afinal reais? Se não eram, quem estaria mentindo para ele, quem lhe contaria aquelas histórias que ele testemunhava de modo tão vivaz, como fazia com as que, quando vivo, E-eh transmitia-lhe perto da fogueira?
As luzes se apagaram. E nesse breve intervalo de absoluto breu, pré-imagético, Magdalegne sentia testemunhar em si um renascimento: a escuridão seguida da luz — era mesmo como se revivesse uma experiência anterior primeva, é possível que lembrança inconsciente do próprio parto. A tela afinal se iluminou por uma projeção de origem imprecisa. Um som impactante fez tremer as paredes guturais enquanto pulava sobre o público uma imagem perfeita de três dimensões sem necessidade do uso de óculos específicos, mas fotografada em preto e branco. Nela identificava-se, a dormir ao fundo de uma gruta muito escura, um homem com características do alto paleolítico, a sonhar com uma caverna toda iluminada e repleta de pessoas estranhas cobertas por peles finas improváveis e sentados em milhares de animais vermelhos impossíveis de identificar — talvez bisões, é provável que mortos — a observar, através de uma colossal e indescritível fenda brilhante, o homem que dormia ao fundo de uma gruta muito escura, e sonhava.
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