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Atualizado: 9 de fev. de 2023

“RAVISSEMENT. Épisode réputé initial (mais il peut être reconstruit après coup) au cours duquel le sujet amoureux se trouve ‘ravi’ (capturé et enchanté) par l'image de 1’objet aimé (nom populaire: coup de foudre; nom savant: énamoration).

[...]

RENCONTRE. La figure réfère au temps heureux qui a immédiatement suivi le premier ravissement.”

(“Fragments d’un discours amoureux”, Roland Barthes)


(Para Angela Maria da Costa e Silva Coutinho)


Corria o mês de fevereiro de 1969. Era azul o céu. Seriam dez da manhã.

A jovem subiu no ônibus e, quando se preparava para dar ao cobrador o dinheiro, o rapaz que vinha logo atrás, com uma nota mais alta, antecipou-se: pague duas, por favor. Ela o olhou com espanto e, conquanto tenha admirado o seu sorriso luminoso, apenas seguiu caminho, é verdade que sem negar o favor. Sentou-se à direita, num banco de dois lugares no meio do veículo, assumindo para si o lado do assento que ficava mais perto do corredor, da passagem.

A condução ainda estava no princípio do seu itinerário (tendo como referência a parada em que se encontrava o fiscal, porque o percurso, de prática circular, impediria tecnicamente a definição de inícios ou términos) e, por isso, ostentavam-se no coletivo vários lugares vagos. No lado esquerdo, um pouco antes da moça, uma mulher de mais avançada idade, sentada à sua janela, saboreava devagar um saco grande de quentes e amanteigadas pipocas enquanto observava com atenção aquele movimento ligeiro dos dois pululantes jovens, discretos tão só em suas concepções. E apenas bem mais à frente se desencontravam outras pessoas, alheias a quaisquer narrativas. O rapaz se aproximou e pediu que a menina concedesse passagem para o lugar mais interno, o próximo à janela, ao seu lado. Ela não moveu as pernas e, desafiadora, sem dizer palavra, apontou num movimento semicircular com o queixo as possibilidades ao redor. Ele, como se outras escolhas não fossem o seu destino, optou por permanecer de pé, dois passos à frente, ainda próximo a ela, uma vez ou outra vez a se fixar em seus olhos, sempre sorrindo.

A senhora das pipocas compreendia tudo o que se passava e acompanhava a cena com a experiência de quem efetivamente sabia (dizer que antevia não seria honesto) o desfecho, com todas as suas consequências, daquele espetáculo da natureza humana, encontro de pássaros primaveris. O cúmplice e terno semblante que a mulher oferecia à menina era recebido de bom grado porque, de certa maneira, hipotecava segurança à jovem — dado algum motivo, a moça percebia-se menos vigiada do que sob uma carinhosa vigília. Em certo momento, porém, no gradual preenchimento dos espaços desocupados do ônibus, outro senhor tomou o lugar vizinho à espectadora (ou seria expectadora?). Essa contrariedade limitava um pouco o contato visual entra as duas, sem no entanto o impedir por completo. Não devendo assistir à cena com a mesma constância de antes, porque a interposição da figura de seu novo involuntário acompanhante poderia fazer com que ele se confundisse com hipotético alvo de seus olhares (receio, aliás, que ela descobriria logo se concretizar), a mulher passou a intercalar os lances enamorados do casal à sua direita com a visão da janela à esquerda, onde via passar vagarosa uma cidade quieta, ainda muito úmida sob o céu nublado do fim da tarde, embora sem mais ameaças de tempestades catastróficas.

O ônibus foi recebendo mais e mais passageiros e, quando afinal o assento ao lado da jovem era o último restante, o rapaz que lhe pagara a tarifa pediu de novo com cortesia que o deixasse passar e ela não encontrou mais como impor recusa, uma vez que a alegação antes usada perdera efetividade. Ele sentou com ar vencedor e se posicionou de modo ainda mais garboso. Então, girou um pouco, quase nada, o corpo para ela e, como quem tivesse uma ciência imprevista oculta em cartola mágica, e para talvez desfazer a ideia de que agisse usualmente daquela maneira com todas as garotas como se dispusesse de uma estratégia padrão de enamoramentos, contou que a conhecia do instituto em que ela estava matriculada no curso de normalistas, informação que — no falhanço da magia — não trazia o desejado efeito de surpresa, visto que esse dado o uniforme da menina já denunciava a qualquer passante atento.

A moça então conduziu com descrição o olhar ao lado oposto do ônibus, procurando outra vez a segurança da mulher que comia pipocas. Mas na fração menos iluminada do veículo, a fisionomia confiante e sábia, que ainda buscava observar os jovens, parecia nesse instante desarmada e confusa — distraída por algo inusitado. Não podia a normalista entender o motivo, por não ter escutado a intervenção inesperada do homem que estava ao lado da mulher. Supostamente encabulado e como se o fizesse mesmo para puxar assunto, ele alegou estar com fome e lhe perguntou se iria comer toda aquela pipoca: não pude almoçar hoje e o cheiro está muito bom, é irresistível pedir, foi o que explicou, de uma forma que, deixemos evidente, provocava alguma simpatia pelo singular despacho de espírito em fazer a petição e não inapropriada comiseração: era afinal muito certo de que não o fazia por necessidade (estava bem alinhado, como quem vem de um ambiente de trabalho que requer elegância) e sim por fortuita falta de planejamento, algum mau cálculo temporal que lhe fizera ter que escolher entre tomar o ônibus no horário correto ou se alimentar. A mulher considerou, numa leitura ainda superficial, porque estava sobretudo atenta à história da jovem, que era uma grande audácia do homem desconhecido, mas disse não ter mais fome e lhe remeteu o pacote para ela já metade vazio (para ele ainda metade cheio, tudo depende do ponto de vista da fome), espichando novamente os olhos e os ouvidos aos acontecimentos da fila oposta de assentos, de onde, no entanto, parecia agora estar um pouco mais distante.

Estudo em uma escola de meninas, disse a jovem, não pode você estudar ali, concluiu, esperando assim o flagrar em mentira. E ele respondeu que frequentava o lugar com alguma assiduidade porque era filho da diretora e estaria sempre por lá à sua procura. Ela não se lembrava de a professora por quem nutria admiração já ter mencionado família, parecia até muito nova para ser mãe de um garotão daquela idade; supôs que fosse uma continuação do logro inicial, alguma tentativa astuta mas improvisada de sustentar o blefe (descobriria só mais tarde que não), mantendo-se, porém, curiosa quanto à abordagem. A luz do sol alto da manhã que batia na janela do ônibus era filtrada pelo vidro e iluminava a pele do rapaz, tornando ainda mais atraente aos seus olhos a figura quase imóvel, que contrastava com um cenário externo urbano que se perdia em um fundo de construções a se confundirem sob a alta velocidade do ônibus. Conversavam os dois jovens sobre o futuro, as perspectivas das funções que se preparavam para exercer na sociedade, as expectativas sobre o mundo que os abrigaria ou repudiaria em suas empreitadas. Preferências político-ideológicas, assunto deveras delicado nessa época para ser tratado francamente com desconhecidos ou recém-conhecidos, iam se desenhando nas entrelinhas das conversas, nos subterfúgios das linguagens, felizmente encontrando, porque esse de modo algum era um item desprezível, animadoras convergências. Distraída que já estava do universo ao seu redor, de súbito, a jovem lembrou-se uma vez mais da senhora do outro lado do ônibus. Procurou-a para saber se encontraria uma audiência aprovadora da sua condução do caso. Mas a descobriu em uma conversa então mais imbuída com o seu vizinho de assento.

Comentavam os dois adultos mais velhos também sobre seus planos para novos futuros. Ambos estavam em vias de aposentadoria após longas trajetórias. Ele era divorciado e ela viúva. Os respectivos filhos estavam bem criados. Não tinha ideia a mulher do instante preciso em que havia sido capturada por aquela conversa na qual dados burocráticos como estados civis revelavam na verdade questões tão pessoais. Lembrava vagamente do assunto ter surgido a partir do olhar do homem aos seus dedos, sem ela saber ao certo se ele contemplava a beleza de suas femininas e diligentes mãos ou lhe investigava a presença de uma aliança anelar que já não existia há muito tempo. Tantos e tantos anos após a viuvez, estaria ela ainda com idade para esses jogos de sedução? A perda que a abalou em longínquo passado, cujos espaços foram ocupados por incansáveis dedicações maternas e profissionais celebradas por todos os seus familiares e colegas de magistério, estaria ainda no tempo de ser retomada por alternativas que agora a assaltavam sob espanto? Teria a disposição de se submeter outra vez a contingências, incidentes, entraves, ninharias, mesquinharias, futilidades, rugas que acompanham o anverso das felicidades da existência amorosa? Ele retirou do bolso o aparelho de telefone celular e solicitou o seu número pessoal: é porque faço questão de lhe retribuir a pipoca, explicou com a voz cheia de encantos e com uma malícia que antes atraía do que assustava.

Ela não sabia o que responder. Pendeu a cabeça um pouco para o lado para desviar dele o olhar e alcançar o casal de jovens cerca de cinco décadas distantes. Riam com graça, movendo os corpos com elasticidade lânguida, o que os enlevava mas era para eles nada além do que os movimentos naturais de todo dia. Captava tudo o que era dito mesmo sem poder ouvir nada à tamanha distância. O rapaz também pediu que a moça fornecesse o número do telefone de sua residência. Ela alegou que não era adequado, que o pai poderia estar em casa e vir a atender a chamada e esse era um risco desnecessário, que talvez fosse mais conveniente ela ficar com um contato para fazer ligação quando possível e se possível, o que, por consequência, concederia a ela o absoluto poder de, com todo o tempo a seu favor, decidir se permitiria a continuidade do flerte. Estaria nas suas mãos graciosas e precisas a continuidade daquela história e sua transformação ou não em algo decisivo naquelas trajetórias de vida.

A mulher, por sua vez, voltou a conceder atenção ao homem que tinha ao lado. Na falta de resposta ao pedido, ele havia adiado o registro do número de telefone e o aparelho móvel passou a lhe circular como distração de uma mão para a outra enquanto falavam. Conversavam sobre interesses em comum, a trocarem impressões acerca de espetáculos teatrais e travarem análises sobre o panorama político mais recente e relatarem suas experiências profissionais, no que elas convergiam, no que elas se diferenciavam. Ela julgou o diálogo inteligente e agradável, de modo que, em verdade, já tinha se decidido sobre o contato solicitado, mesmo que a resposta não revelasse ainda nem para si. Aquela companhia interessante de personalidade atraente fazia com que as paradas do ônibus se tornassem quase imperceptíveis e, numa delas, o rapaz que conversava com a jovem deixara o ônibus, após da moça se despedir com trocas de beijos carinhosos nas bochechas, alguns segundos mais demorados e centímetros mais próximos do que o da etiqueta usual. Quando a mulher deu por si, a normalista já estava sozinha. O homem ao seu lado, então, informou que já havia passado do momento de desembarcar havia três pontos e não queria deixar o local sem a oportunidade de retribuir a gentil salvação do seu apetite.

Com breve mas grande atenção, a mulher mirou novamente a menina (mais bem dizendo, admirou-se dela), agora que estava séria, absorvida pela leitura de um livro — um livro que chamava a si mesmo de Livro e se declarava feito de Areia. Apenas após isso, respondeu ao homem: você me dá o seu número e talvez eu telefone, e como em seu semblante ele se perguntasse em que prazo, ela completou enfática, quando eu tiver fome. Ele se deu por satisfeitíssimo e, esperançoso após fornecer os dados e se despedir, antecipou-se a tocar a campainha e descer do coletivo, antes que se afastasse ainda mais de sua parada original.

Afinal sozinha, a mulher, do seu lugar, uma última vez, voltou-se à jovem, que fechou o livro e trocou com ela um olhar que a iluminou no outro lado de um intransponível espaço. De modo especular, sorriram uma para a outra, ao mesmo tempo.

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