top of page
Foto do escritorContos Conjugados

Equilibrar

A música parou e ele tem que continuar a andar, retornando ao hospital, onde sua mãe é submetida a uma intervenção cirúrgica importante, no intuito de lhe devolver a visão plena de um dos olhos, não sabe ainda se o direito ou o esquerdo. Naquela manhã de alta primavera, a mulher havia se internado para esse fim, após prévia marcação, em data que lhe gerara contragosto porque era coincidentemente o aniversário desse seu único filho e ela não gostaria de impedir que comemorassem os seus vinte e cinco anos, embora ele não se importasse. No fim, a agenda profissional do médico havia sobrepujado a dela, de cunho pessoal.

Dá-se conta de que deve voltar tão logo cessou seu movimento o carrossel, que ele observava de modo quase hipnótico há poucos segundos. Acabou também a canção de realejo de tirar sorte que acompanhava as voltas dos cavalos vazios, uma vinheta que parecia tocada em acordeom, como o som de uma caixinha de música. A mãe, habituada a ouvir muitos discos desde que passara a enxergar menos, teria apreciado, como o show de todo artista. A primeira coisa que pedira assim que se instalaram no quarto do hospital foi para que ligasse, baixinho, o rádio de pilha portátil, um Philco Ford creme de três faixas, que trouxera de casa. Ele levantara a antena e a caixa de som prateada a distraíra até a chegada do médico.

A melodia, que saía da coluna central do brinquedo do parque de diversões, desenvolveu-se no sentido normal, apesar do movimento inverso do mecanismo. A mãe certamente não entenderia por que o carrossel sem crianças esteve rodando ao contrário. Ele também não percebia o motivo. Devia ser alguma espécie de manutenção, forma possivelmente eficaz para lubrificar suas engrenagens... mas não tinha a cabeça livre para refletir a respeito do mistério. Bastou o espetáculo dos cavalos sem montadores a galopar para trás em sua marcha regular e disciplinada para o manter petrificado ali, enquanto tentava esquecer ou compreender toda a discussão que acontecera (ou não, porque se dera na falhança de suas reações) duas ou três horas antes.

Ele está um pouco mais calmo agora, após, enquanto assistia aos giros inversos do carrossel, finalmente explodir num choro resultante de uma dor moral pungente. Mas ainda não lhe sai da lembrança viva o momento em que o médico havia entrado no quarto da mãe para uma pequena conversa pré-cirúrgica. Ao invés de perguntar sobre o seu estado físico ou psicológico e lhe trazer segurança quanto ao procedimento ou mesmo esclarecer se operaria naquela data sua vista direita ou esquerda, o que ainda não estava claro, o velho cirurgião apresentara, por outro lado, como primeiro questionamento, em tom arrogante e até um pouco sarcástico, sob voz alta, quase um grito impositor, a indagação que vinha, segundo ele, antes de mais nada, em quem vocês vão votar para presidente nesse segundo turno? O rapaz aniversariante, sentado que estava numa cadeira, próximo ao leito da mãe, assim permanecera, desarmado, perplexo com o assunto estapafúrdio para a ocasião, embora tema de dez a cada dez rodas de conversa naquele tempo em que estava em curso uma eleição presidencial direta no país pela primeira vez em quase trinta anos, cujas urnas decisivas já se avizinhavam. O que pretendia o médico? Que interesse poderia haver na abordagem? Condicionaria de alguma maneira o sucesso de seu trabalho naquela tarde à resposta que lhe convinha?

Na sequência, o rapaz, quase todo o tempo calado, ouviria do cirurgião algo facilmente classificável como um vasto arsenal de despropósitos, dado o ainda recente contexto de abertura política que o Brasil vivia. Não consegue, apesar disso, elaborar completamente por que o atraiu momentos depois o carrossel girando ao contrário, sobretudo por conta da figura trôpega de sobrecasaca negra que, de repente, subiu nele para correr entre os cavalinhos, no sentido oposto ao do movimento do brinquedo naquele instante, mas que seria o seu decurso original. O rapaz olhou ao redor, ninguém todavia no parque aproximou-se para retirar o louco bêbado que, trajando luto, forjava uma dança na corda bamba de sombrinha entre os pelotões desmontados, sorrindo sempre ainda que pudesse se machucar; certamente, os funcionários locais já estavam acostumados com a sua bufona presença, talvez insistente, e a inutilidade de afastá-lo os teria vencido. Testemunhando a irreverente e estranha performance, o jovem interessava-se pela imagem dos cavalos galopando para trás e do ébrio entre eles correndo para frente com o corpo envergado, aguardando para ver se ele seria capaz de se mover na direção desejada ou se quedaria arrastado junto com os animais.

Habituado que a sua autoridade puramente técnica e especializada confundisse a audiência, a lhe proporcionar também credibilidade opinativa em qualquer outra matéria, numa extensão indevida de saber cunhada por um título vago de doutor, o médico tinha se empertigado quando a paciente insinuara que votaria no operário, embora o tivesse feito pela via contrária, sem o dizer diretamente, ao negar ser capaz de depositar confiança em quem ela chamava de engravatado demagogo. A falta de facilidade para impor a sua posição e fazer nascer mais votos ao seu candidato com certeza o pegara desprevenido, resultando em óbvia contrariedade. Julgando oportuno tirar o foco sobre ela, o filho, de modo um pouco mais claro, declarara o mesmo voto, ainda que ele na verdade nem tivesse essa convicção. O médico, peito estufado, caminhara com passos rápidos até ele que permanecia sentado e inclinou-se um pouco apenas para aproximar os rostos sem contudo perder a vantagem de manter em altura maior os seus olhos muito abertos e indignados. Eu não quero viver em um país comunista de novo, bradou ele, num misto de raiva e poder e, quiçá, ignorância de nomenclaturas, não podemos ser governados por um grevista terrorista e analfabeto, e ameaçara, depois vocês irão reclamar que os militares intervenham, mas será necessário de novo e eu avisei há trinta e cinco anos que deveríamos votar no general e não naquele mineiro corrupto, continuara, provavelmente na intenção de expor uma experiência de eleitor que, naquele tempo, por motivos óbvios, pessoas minimamente jovens não teriam, a consequência, mais cedo ou mais tarde, será que os militares cumpram sua função novamente, o problema é de vocês que não gostam, eu acho muito melhor, revelara, concluindo ufanista, já com a voz quase a falhar, pensem bem antes de dar o voto para esse delinquente que não gosta de trabalhar em vez de um homem de bem, patriota honesto, sem conchavos políticos, bem formado e católico de fé, disposto a combater os maiores cancros desse país que são a corrupção e os vagabundos do funcionalismo público do Estado inchado e ineficiente, porque é nesse homem que vocês devem votar!

O rapaz tinha dezenas de respostas para todos aqueles artificialmente coloridos impropérios, inclusive o de que no primeiro turno nem tinha votado no operário, segundo a espécie de acusação que o médico inferira por causa da visão polarizada que era de certo modo incontornável em um segundo turno eleitoral, mas no ex-prefeito de São Paulo; assim como sabia que a mãe escolhera o gaúcho, como já fazia em escrutínios do Rio de Janeiro havia anos e assim o repetiria ainda em outras oportunidades futuras. Mas ele receava pelo fato de que estava diante do homem que em poucos minutos enfiaria um bisturi nos olhos da mãe, ainda que nessa altura já duvidasse que o profissional tivesse o equilíbrio necessário que exigia a tarefa. Para demostrar que não era nenhum leigo, o rapaz citara que o combate à corrupção apregoado pelo candidato do médico deveria ser uma questão do judiciário e não de um chefe do executivo que se arrogasse a função de xerife, recebendo como réplica um quase monossilábico Besteira! Mais incisivo, tentando desarmar o interlocutor, perguntara, em razão da crítica aos servidores estatais, quantas vezes por semana o médico aparecia no plantão do hospital público em que tinha matrícula, mas fora interrompido aos indignados gritos de É diferente, é diferente!

Jamais pensou que se calaria de novo, como havia feito adolescente, jovem e no início da vida adulta, por sobrevivência, por medo, para não ter, apesar de suas posições ideológicas relativamente moderadas, o mesmo fim de conhecidos de infância, vizinhos do bairro e até colegas de faculdade, as manchas torturadas dos governos militares a que o médico fazia apologia. Novamente emudecera naquele momento, embora com os olhos chispando de indignação a revelarem os seus transparentes pensamentos, outra vez por temer que suas opiniões pusessem em risco alguma integridade física, dessa vez numa circunstância invulgar. A mãe, gentil, voltara os olhos a ele ternamente, solicitando com esse olhar que evitasse o conflito naquele instante, priorizando a sua cirurgia. Maria Clarice comunicava-se com o filho com insuspeitos gestos que, somente na cumplicidade de ambos, diziam tudo.

Ele saiu do hospital durante o procedimento cirúrgico para uma caminhada, calculando mentalmente o tempo que duraria a operação no intuito de retornar antes do seu fim, o que deveria se dar por volta das 18 horas. Não havia ido longe e, quando voltava, foi atraído ao parque de diversões antigo que ficava perto do hospital, do outro lado da rua sob o viaduto. Outros aniversários teria ele passado com a mãe (e o pai, e avós, e tanta gente que partiu) em espaços de entretenimento semelhantes. Muitas fotografias comprovariam isso, se soubesse onde encontrá-las. O parque estava fechado naquele horário, mas o gradeado baixo convidava que se entrasse sem dificuldade e ele não resistiu. O espaço lúdico e vazio o permitiu refletir sozinho, ainda consumido pelo silêncio a que se obrigou, embora o choro de alívio somente haveria de ser liberado diante do carrossel reverso com sua música de acordeom. Qual a pertinência da ameaça que ouvira? Será a abertura democrática um constante jogo de forças que num dado momento pode enfim recuar a nação para os tempos de exceção que nesse país mais pareciam ter sido a regra? O que agora se mostrava tão consolidado teria apoio popular em próximo ou distante futuro para ser novamente destituído? Que pensamentos, conservadores de qualquer espectro, seriam capazes de pavimentar novamente junto à opinião pública esse tipo de aventura, que então parece tão inviável? Em que ambientes podem estar hibernando desde já essas ideias?

Logo surgirá a lua, entre nuvens no mata-borrão do céu, que agora exibe apenas uma única estrela fria, que talvez seja um planeta, como já ouviu falar. Por isso, ele está voltando ao hospital. Caso encontrasse o médico de novo, poderia — estrategicamente após saber sobre o sucesso do procedimento e qual vista da mãe afinal fora operada, a esquerda ou a direita — responder tudo o que lhe ficou engasgado, inclusive apontar a sua atitude antiética ao usar o chão do hospital para proselitismos e, quem sabe, expor sua hipocrisia por falar sobre corrupção quando oferecera à mãe cobrar mais barato pela cirurgia se não precisasse documentar o pagamento. Quem sabe o chamasse de viúvo da ditadura? Era uma boa ofensa, curta na medida para quem não estava disposto a ouvir argumentos elaborados. Como fosse, ele gostaria de finalmente contrapor, já que, caso se concretizassem todas aquelas intimidações às esperanças do país, calar seria o que restaria e chorar poderia voltar a ser ainda muitas vezes opção a falar.

O rapaz apressa os passos de retorno porque já caía a tarde. E, enquanto se afasta da entrada do parque, ouve recomeçar a música de realejo de tirar sorte. Já longe, não verifica para qual lado ou em que sentido gira então novamente o mecanismo.

8 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page