“Tu se’ omai al purgatorio giunto:”
D. Alighieri
José Brito tinha um defeito grave, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade.
Essa primeira frase do conto não era a primeira frase do conto, ou não era a primeira primeira frase do conto, isto é, a sua versão original. Ocorre que, inicialmente, a intenção era a de que a personagem chamasse Dante, escolha de intenção irônica, dado o sentido da inaugural sentença, porque o nome, que vem do latim, significa permanência, constância, algo duradouro – donde a existência da palavra “durante”, de mesma raiz etimológica (puro cálculo filólogo sem fonte segura ou comprovação). Tal batismo, entretanto, contaminaria a narrativa com a forçosa mas inadvertida presença do autor de La Divina Commedia; não fosse apenas uma hipótese, o mais honesto seria confessar a influência direta da onipresença física sobre a escrivaninha da obra editada em italiano (a recente aquisição ocupava o posto de atual livro de cabeceira). A persona da história, contudo, nenhuma semelhança guardava com o florentino renascentista, o que resultaria inadequado ao desenvolvimento do enredo.
Por essa razão, tinha riscado com a pena a alcunha e grafado logo acima: Pedro, cujas origens, tanto a latina quanto a grega, remetem a pedra ou rocha, munindo a criação do mesmo desejado (e ainda irônico) valor de estabilidade, de imutabilidade, outra vez, algo duradouro, predicados que decididamente os empregos e ofícios efêmeros do protagonista não alcançavam. Porém, agora, a aproximação com o Imperador é que parecia inevitável e não se permitiria o descuido de aproximá-Lo a figura ficcional tão repleta de defeitos. Era previdente evitar problemas com S.M., mais ainda porque escrevia a narrativa para o Jornal das Famílias, público em sua maioria (se não integralmente) conservador e, por isso mesmo, com inclinações monarquistas, nada afeito a ideias republicanas que apenas com timidez se faziam ouvir ali ou cá, em um ou outro canto dos anos 60. Além disso, seria comprar uma briga com nota promissória sem o devido crédito: a personagem José Brito (antes Dante e até então Pedro) também não podia estar mais distante de D. Pedro II, nos mais diversos aspectos, das posturas diante da vida à condição social que lhe era imposta.
Prosseguindo a busca mental, sempre com o intuito de que a denominação da figura representasse o avesso de sua personalidade, o autor cogitou Perpétuo ou Constâncio, chegou a anotá-los sem muita convicção, mas não derrubou do trono o nome em vigor em benefício desses candidatos, julgou que não haveria neles nenhuma sutileza. Até que alcançou o nominativo que se exibia no alto da página, encabeçando a narrativa, após nova rasura, a qual, adiantemo-nos, seria a penúltima, e é possível que tudo o que se conta aqui tenha como culminância essa rasura derradeira, cujo anúncio, por excesso de ansiedade ou falta de habilidade para organizar a diègèsis, acabamos de antecipar.
Assim é que a escolha por Brito tenha se mostrado mais pertinente, mais interessante até do que Pedro, já que o novo nome também significava pedra, mas não uma ostensiva rocha volumosa, antes uma pedrinha menor ou mesmo um conjunto delas, ainda resistente, é verdade, mas sem necessariamente configurar um obstáculo exceto para os descalços. Era, pois, uma efetiva pedra no meio do caminho (nem podia imaginar que a expressão comezinha um dia se transmudaria em poesia), podemos dizer que nel mezzo del cammin di nostra vita, para resgatar o verso inicial da commedia divina e desfazer a má impressão de haver no início invocado e pronunciado em vão a Obra, em suma, era uma pedrita que poderia tão somente magoar o pé, sem envergadura para interromper o percurso por bloqueio absoluto. Ou seja, mais do que oposição franca à sua característica inconstante, essa alternativa trazia uma ambiguidade ao homem inventado, uma ilusão para o leitor se assim quisermos, a enriquecer o simbolismo do apelido. O escritor gostou disso finalmente: releu e contemplou o nome e viu que era muito bom.
Como precaução última, acrescentou um José à frente, para evitar comparações com o seu inestimável amigo Francisco de Paula Brito, falecido há menos de sete anos, tempo bastante para que muitos já o tivessem esquecido (é o destino dos que têm a infelicidade de não permanecer vivos) mas talvez insuficiente para evitar com segurança alguém maldoso de, ao tomar a folha das mãos de uma leitora sua, aproximar personagem e defunto, o que o desagradaria porque, mais uma vez, José Brito e o Paula Brito em nada tinham parecência e seria injusto com o velho editor cotejá-lo com figura tão volúvel, logo o Paula, que se dedicou toda a vida ao jornalismo, numa constância comovente e obstinada. Tratava-se de cuidados em que talvez apenas ele reparasse essas longas reflexões batismais e até o faziam desperdiçar os dias: aliás, por conta de tais vacilações denominativas, aos borbotões os perdera (os dias), de maneira que se atrasava para entregar o texto, cuja consequência seria o adiamento em seu pagamento pelo serviço ao jornal do Garnier, luxo de que não podia gozar nesses dias.
Afinal, a condição financeira não era nada confortável naquele tempo, como a propósito nunca fora. Devia empréstimos a alguns amigos, sobretudo a Ramos Paz; é verdade que o antigo companheiro de quarto dos tempos da Matacavalos não o cobrava dívida jamais, mas sua própria consciência, seu orgulho e seu brio faziam-no por si, e com o rigor dos agiotas de bancos. Há muito que pulava de pensão em pensão e de alcova em alcova, sempre que os aluguéis chegavam a valores que lhe rasgavam a fazenda dos bolsos, daí que tivesse estabelecido agora como teto o imóvel comercial com sala e quarto da Rua da Alfândega que ficava no sobrado acima da loja de uma alfaiataria ou armarinho, nunca entendera ao certo a natureza exata do comércio vizinho logo abaixo de si. E mesmo essa morada seria decerto provisória, caso não fosse capaz de fazer dinheiro, já que os salgados 35$ poderiam ser justos para um imóvel mobiliado, mas lhe pesavam. De maneira que, ainda que trabalhasse com algum esmero e atenção, o excesso de zelo fabulesco e as intenções estéticas perfeccionistas não devessem ter espaço em sua literatura, pelo menos não em momento tão agudo. Precisava contornar, não quaisquer, mas a maioria das tentações artísticas, embora a contragosto.
José Brito tinha um defeito grave – releu o escritor – não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade – e, retomando a pena entre os dedos, continuou – é o que esse homem chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para uma alfaiataria – o autor pensou na imprecisão do comércio logo abaixo de seus pés, na sobreloja, e preferiu fazer a troca – entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos – e, tendo a tinta secado, deixou descansar o braço direito e, com a mão esquerda, tirou o pincenê para o pousar sobre o papel enquanto massageava a parte alta do nariz, entre as sobrancelhas.
Reposicionando os óculos, reviu o parágrafo e surpreendeu-se com esse caminho inesperado: ora, José Brito, que nada trazia de Dante Alighieri, Pedro de Alcântara ou Paula Brito, de súbito, refletia justamente ele próprio, pelo menos no contraste entre a falta de dinheiro e a inquebrantável altivez. Não! Que bobagem cogitar algo assim! O orgulho de JB nada mais era do que empáfia sem razão. Ele, por outro lado, passara os últimos anos (como toda a vida) a se esforçar para difundir uma imagem positiva sua junto à sociedade da Capital do Império e, agora, junto à família portuguesa de Carolina. É antes de tudo amigo do poeta Faustino de longa data, mas ainda está por conhecer os demais irmãos da moça, parece que Miguel e Adelaide estão a caminho do Brasil, ou já chegaram, não obteve informações mais precisas. De qualquer forma, é imperativo mostrar-se alguém de que a noiva deveria tirar todo e qualquer bom partido, apesar do que a priori, por suposição, viesse a desagradar seus parentes (não é tolo e pode imaginar motivações para tal). Trabalhava diuturnamente, muitas vezes até horas mortas da noite, e, sem pegar atalhos indolentes, empreendia uma mínima ascensão social que fosse um bocado além do simples estado de não passar fome. Sem cabotinismo: reconhecia no seu íntimo uma diligência, na verdade, antípoda de José Brito. Enquanto isso, o objetivo pedagógico ao criar a personagem da narrativa, desenhada com palavras que elegia com minúcias, era exatamente o de demonstrar as consequências funestas da má escolha de Augusta, a trágica heroína feminina desse conto que escrevia e na qual as leitoras se espelhariam, ao contrair matrimônio com tipo como aquele, amigo íntimo em demasia de patuscadas, a quem por desgraça a mocinha unira-se (mais positivo seria a ela não amar e com ninguém se casar, entendimento em diametral oposição ao que espera que Carolina e os irmãos tenham quanto a si).
A história, jamais poderia explicar por quê, após semanas empacada, desabara quase completa em sua cabeça mais cedo naquela mesma noite, em que Sarmiento, o novíssimo e nem mesmo ainda empossado Presidente da Argentina, esteve no Club Fluminense a tomar chá e trincar torradas. O poeta (na época, era mais conhecido por versos e dramaturgias do que escritos em prosa) jogara amigável partida de xadrez com o Professor Palhares enquanto observava cavalheiros e damas, dentre as quais uma indubitável Augusta (não tinha esse nome, é evidente, mas era toda ela, un ange, une jeune a quem só faltava ser espanhola e não gozar daqueles excessos de saúde para ser um dos fantasmas hugoanos), ele observava damas e cavaleiros, dizíamos, executarem no salão a dança em simultâneo privada e coletiva que tantos casais usavam para disfarçar socialmente primitivas intenções incontornáveis por natureza. E, superando tudo isso, a inesperada presença do homem argentino: boas carnes, olhos vivos e grandes, de casaca, gravata branca e cara rapada, e uma comenda, provavelmente portava uma comenda, a exibir a áurea de quem acabara de ser eleito o representante máximo da República do seu país e parecia estar no Rio de Janeiro, na Capital Federal do Brasil Imperial, apenas para fazer nascerem ciúmes e invejas naqueles raros espíritos locais que cultivavam ideais republicanos, em geral ocultando-os pelos citados cantos dos anos 1860.
Após às dez e trinta da noite, ultrapassados os umbrais do antigo palacete do Visconde do Rio Seco há muitos anos transformado em club, cruzando sozinho a Praça da Constituição numa noite de inverno naquela altura antes fresca do que fria, o autor vislumbrava consigo todo o enredo do conto que escreveria, a fluir forte nele próprio como um rio sem muitas pedras: o consórcio de Augusta com José Brito, as dificuldades econômicas por que passariam, a irresponsabilidade do homem que se recusa a fixar emprego, os conselhos contra aumentos da família (poderiam advir de uma tia da moça), a gravidez indesejada e até condenada pela mesma parente mas recebida com despreocupação pelo jovem casal, o agravamento da crise financeira no decorrer da gestação e, por fim, o nascimento da criança que haveria de ser entregue à Roda dos Enjeitados por sugestão irreprimível da tia, cruel conselheira. Não pensava que algo pudesse evitar o fechamento das cortinas sob esse final sofocliano, nem o podia, ou a história perderia o empenho exemplar que o Jornal das Famílias exigia, ainda que o teor demasiado forte dessa vez pudesse ferir sensibilidades. Entretanto, passos já avançados pela Rua do Teatro, deixou-se levar por curiosidades, não compreendia ele que elemento da noite no Club Fluminense motivara a elaboração de tudo o que estivera tanto tempo represado em si: seria a materialização da jovem Augusta no baile ou a figura do novo Presidente argentino na humilde posição de tomar chá e trincar torradas publicamente?
De repente, intuía-o: fosse quiçá possível disfarçar seu republicanismo na fábula romanesca que elaborava, como ocultos estavam, já nos cansamos de o dizer, nesses cantos sombreados do final da década de 1860. Foi o que a sobreposição do homem eleito à imagem da jovem inocente fez emergir de seus pensamentos, concluía então. Na saída da Ouvidor, o escritor ponderou que, se criasse um elemento impositor ao casamento, um motivo que tornasse o esposo uma escolha que independesse da vontade da menina, nem seria difícil arranjar-se isso, José Brito poderia representar o governante à revelia que Augusta (imatura como a nação) teria em sua vida, circunstância cujo resultado terrível, a perda do filho (isto é, a futura geração, entregue aos cuidados de um órgão fomentado pelo Império como paliativo para suas inerentes incompetências), poderia ter sido evitado caso a ela permitissem eleger seu esposo. Carecia, pois, de buscar ensejo que conduzisse também a tal conclusão, a de que uma liberdade de escolha pessoal levaria sua vida a um termo mais feliz; para tanto, servia uma paixão anterior que tivesse se tornado excelente marido de outra jovem qualquer, alguma que antes, isso vinha a calhar, com razão ou não, ela julgasse invejá-la pelo namoro com José Brito, aliás, a própria tia poderia trazer notícias a respeito...
Mas, quando entrou na Rua da Alfândega, o confuso projeto parecia ter seguido em frente pela Vala, porque lhe escapou por completo, como se os encaixes que lhe parecessem tão perfeitos fossem agora impossíveis e até tolos. Não era isso incomum, deve aliás suceder com frequência a todo artista, em especial com elaborações promissoras mas frágeis como aquela, mais obscura que complexa. Dado o tema espinhoso, pensou logo, até fora conveniente para que se mantivesse longe de encrencas. Ainda assim, ao menos os propósitos de parábola da narrativa ainda estavam consigo intactos; para cumprir a obrigação profissional, isso bastava, foi o que ponderou, fazendo o espírito do pragmatismo reaver lugar em seu corpo e mente, lembrando-se das dívidas e visualizando Carolina, que lhe parecia às vezes tão inalcançável, tão intocável, tão incorpórea como a própria Beatriz, e tudo o que menos desejava era fazer de Carolina uma Beatriz para si, menos ainda por motivos pecuniários. Com essa motivação suplementar, adentrou a abertura independente que ficava ao lado esquerdo da porta larga do armarinho/alfaiataria (àquela altura, já cerrada há horas), subiu as escadas pulando os degraus e, chegando ao quarto, pendurou cartola e casaca, acendeu alguma iluminação e, ato contínuo, sentou-se à escrivaninha, embora não o apetecesse a escrita noturna.
José Brito tinha um defeito grave, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que esse homem chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia – foi como tipógrafo que iniciou seu percurso profissional, pensava enquanto relia o parágrafo – mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante – gostava por isso de pensar que, de maneira literal, vivera das letras desde o primeiro trabalho, e riu-se da própria anedota, enquanto seguia a escrita – O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa – o escritor lembrou-se então de que tivera ocupação anterior, ainda garoto vendia nas ruas e na Quinta de São Cristóvão as cocadas que a madrasta preparava para quitandar – Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho – também ele fora caixeiro na década anterior e igualmente ficara no emprego por três dias somente, ademais, sendo justo, sabia que fora mal tipógrafo, porque abandonava o serviço para ler, ocultado atrás das máquinas – Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos – vendedor de doces, caixeiro viajante, tipógrafo, dramaturgo, poeta, redator e jornalista do Diário, funcionário público... mas sua multiplicação de funções teria razões opostas às da sua personagem, segundo ele mesmo avalizava – não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo – as funções mudam e mudam e mudam e mudam e mantém-se a situação financeira parca – Ela era órfã, morava com uma tia e cosia com ela – Carolina, também já sem pai e mãe vivos, precisara deixar outros irmãos e mais lá se sabe quantos familiares em Portugal para vir ao Brasil cuidar das doenças de Faustino – Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha – estava mais frio, ele tinha sono, mas não podia interromper-se, e a verdade é que não queria parar, alcançara o ponto em que a redação flui – O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança – o autor escrevia pulando linhas para facilitar a revisão posterior, mas as lentes ultrapassadas do pincenê do contista não o ajudavam a diferenciar com precisão cada conjunto de palavras das faixas horizontais em branco que as intermeavam, não àquelas horas, além do que a caligrafia não era desenhada, por vezes nem legível, sobretudo em tais condições adversas, mas ele carecia de seguir, não convinha parar de escrever – Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono – imaginava o artesão das letras se um dia teriam filhos, Carolina e ele, a condição financeira do nubente e a idade avançada do casal, todavia, não traziam bom prognóstico, depunham contra, desincentivavam – seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe, o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno – o problema inesperado era não saber agora como encerrar a narrativa; nem conseguiu, porém, cogitar muito quanto a isso, em razão de um rumor algo abafado que se avolumava na rua e cortava o silêncio da madrugada.
O autor, que já chegava com José Brito à esquina da Rua da Guarda Velha para a entrega do bebê à Roda, lá abandonou-o com a criança, como o pai estava prestes a fazer com o filho, retornando subitamente à Alfândega. Deixou a cadeira e contemplou por um segundo as três janelas fechadas; entre a esquerda e a direita, optou por abrir a do centro. A lufada de vento frio da madrugada atingiu-lhe o rosto e fez dissipar o calor que o lume do lampião legara ao quarto nas últimas horas. Podia ser o sono, o largo tempo debruçado sobre o papel, a diferença repentina de temperatura, os esforços oculares ao ler e escrever na ausência do sol, o que ocorreu é que sentiu tonturas e apoiou ambas as mãos na grade da pequena sacada que ornava a parte externa do sobrado. Os olhos fecharam-se no movimento, em compensação, o som que agora lhe tomava ouvidos era nítido: tratava-se de gritos, sem dúvida, gritos de dor, de protesto, de súplica. Ao levantar as pálpebras, deparou-se com a cena sob a iluminação a gás da via pública, na qual um homem arrastava uma mulher amarrada pelos pulsos.
Foi fácil compreender o que era e naturalmente não seria possível acudir: o homem corpulento era um caçador de escravos fugidos que trazia capturada o que a Lei do Império e antes da Colônia há séculos estabelecia como propriedade de alguém. Dentre os apelos da desgraçada, discerniu algumas informações: “estou grávida, senhor moço, me solte e serei tua escrava, meu senhor é mau e vai me castigar com açoites, no estado em que estou será ainda pior de sentir, com certeza mandará me dar açoites”. O mercenário limitou-se a um “siga!, quem lhe manda fazer filhos e fugir depois?”, enquanto chegava quase à altura da pequena varanda do escritor. Ela punha os pés às paredes, recuava com grande esforço, inutilmente, o homem era robusto e arrastava-a, a ela e ao filho. Quando afinal parou a pouca distância do sobrado em que o observador se encontrava, a mulher arquejava, desesperada; ele, por sua vez, nem parecia transpirar muito, mas era difícil pormenorizar daquela distância. Bateu à porta e o senhor, que estava em casa, acudiu ao chamado. Foi fácil ouvir o diálogo, os dois homens nem falavam tão baixo, como se a cena precisasse mesmo ser ouvida: “aqui está a fujona”, “é ela mesma, é Arminda... entra, Arminda!”
Apesar de ser um despropósito pensar nisso naquele momento, não se conteve: passara dias e dias a tentar batizar sua personagem com um nome adequado e de repente a realidade oferecia um quadro como aquele, cuja pessoa central chamava-se Arminda e não poderia ser mais exato para a vítima. Arminda!, ecoava-lhe, Arminda! Era como colocar o substantivo “arma”, objeto símbolo da guerra, sob insuspeita e gramaticalmente subversiva forma gerúndia, a indicar uma indefinida expansão da ação no tempo. A vida daquela mulher cativa era isso: um duelo infindo e perturbador, sem princípio ou fim, contra tudo ao seu redor. Contemplou novamente as três pessoas logo abaixo e sentiu a impotência de não poder reagir.
Assistia à cena da pequeníssima varanda como quem estivesse no balcão de um teatro. Observou o homem entregar o que julgou serem duas notas de 50$ ao caçador (100$?, 100$!, repetiu para si o escritor) e viu ainda o predador recompensado virar as costas e sair de cena, sem conhecer as consequências do desastre que comporia o fim do ato. O senhor repetiu “anda, entra, Arminda!”, mas a mulher não se mexeu, não podia, contorcia-se deitada, mãos à barriga. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono.
O espectador estava paralisado, queria atuar no caso, mas não encontrava meios de vencer sua inação, sua negligência, sua tibieza: seu pavor. Nenhuma descrição do Inferno do ilustre florentino era assim tão verdadeiramente dantesca! De golpe, a mostrar que o espetáculo tinha plateia ampla e não apenas a si como testemunha solitária, outros olhos surgiram a saírem das casas próximas, puxando consigo seus respectivos corpos à boca da cena. Os invasores, que quebravam com esse movimento um pacto teatral, não acudiam, contudo, a mãe que perdera o filho nem o corpinho que já nascera sepultado nas pedras da Alfândega; antes, amparavam e consolavam o homem, o dono que vira sua propriedade protagonizar o espetáculo de horror. O público cercou tudo, impedindo que o escritor pudesse manter boa visão e divisasse os detalhes; como eficientes contrarregras (seria essa talvez a função que então eles exerciam desde o início?), levaram todos os elementos do palco aos bastidores da casa do senhor. E, em poucos segundos, a rua tornava novamente à mesma de antes do drama, como se o pano da noite caísse sobre ela.
Fechada a janela, manteve-se de pé e imóvel por longos minutos no silêncio; nem mesmo a tontura, que não o abandonara, provocava movimento. Finalmente, olhou-se ao espelho que estava à parede e discerniu com atenção no fundo da superfície sua imagem no quarto cheio de sombras. Após dois passos, olhou o próprio rosto de muito perto, e assim se manteve por ainda bastante tempo. Voltou-se ao conto incontínuo sobre a mesa. Como estava, não fazia mais sentido algum. Sabia agora como o concluir, é verdade. E sabia também que, se o encerrasse com a nova forma que concebia e promovesse tais alterações, não o poderia tornar público, não naqueles tempos, não no Jornal das Famílias, não sendo quem era e sem se expor em demasia e colocar em perigo a ele e Carolina e o futuro... e, esgotado, sentiu ainda mais sua inoperância.
Pensou em rasgar tudo num ato de fúria. Domando o ímpeto, conteve-se. Apenas trouxe os papéis para perto do peito, depois dobrou-os e foi guardá-los, ou escondê-los se preferirem termo mais preciso, nem era a primeira vez que assim se via obrigado a proceder, guardar ou esconder os papéis entre às páginas do livro que tinha mais à mão, e dessa forma a narrativa inconclusa abrigou-se no meio do caminho entre o Inferno e o Paraíso, junto a tutta quella turba magna che ricompie forse negligenza e indugio da voi per tepidezza in ben far messo, como não pôde deixar de ler na página. O texto quase acabado era de repente um rascunho de novo, que, esperava ele, purgando la caligine del mondo, um dia retomaria. Não, talvez não: pensou ele dessa forma porque era mais razoável viver sem algumas esperanças, protegia-o de decepções. De todo modo, arrumaria agora qualquer outra coisa para a folha do Garnier, qualquer outra coisa menos elaborada ou crua, e necessitava de ser rápido, o aluguel logo venceria, 35$ por aquele cubículo, onde estava com a cabeça?!, precisava escrever qualquer coisa de imediato.
Guardara bem guardado (ou escondera bem escondido) o conto interrompido, mas não sem antes observar a sequência de apelidos do protagonista no alto da página, na frase inaugural do conto, tantas escolhas de pretensão irônica, tantos dias de reflexão... E, enfim, erguida a pena do tinteiro, riscara o nome José Brito – eis a rasura definitiva – para ainda mais acima, no limite da margem superior do papel, quase a vazar a tinta à superfície da mesa nua nos resíduos das palavras, escrever, em letra menor dado o espaço exíguo mas gravada com mais força e em maiúsculas, um novo nome para o seu protagonista, Cândido; e, após poucos segundos de ponderação, o sobrenome, Neves – e assim ficou: CÂNDIDO NEVES.
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