A imagem enevoada e as muitas rosas ao seu redor (supõe serem rosas as pétalas que o acarinham o rosto, pelo pouco cheiro que pode sentir dado o algodão que lhe bloqueia as narinas) não o permitem visualizar a cena, mas, de dentro do caixão, o defunto capta o burburinho que se aproxima. É finalmente uma despedida honesta, não aquele silencioso e magnificente velório de museu acompanhado por menos de vinte pessoas, porque o povo certamente foi afastado em razão de uma aleatória manhã carioca chuvosa e fria. Escuta com clareza, ainda que à distância (é espantoso como se ouve bem depois de morto), a discussão à entrada com o segurança. Somente uma emissora de televisão está autorizada a filmar, diz o guarda, que recebe, ignorando a interdição, a resposta de que Não somos a TV, meu amigo, somos o cinema!, em tão alto e entusiasmado brado que nem se precisaria estar morto para ouvir, ao que segue ainda o complemento irônico Fique de olho aí fora para não roubarem a nossa Brasília — que ninguém desconfie da ambiguidade da frase em um tempo em que ambiguidade é mesmo questão de sobrevivência.
A família estranha os movimentos. Não fossem as rosas e ele tentaria verificar a reação de parentes e amigos ao seu lado — a viúva do terceiro matrimônio, a filha adotiva, a governanta de tantos anos e a protagonista de suas telas em fases recentes que se destaca por estar toda de branco e se arrebenta nele vez por outra como uma espuma marinha... Mas a verdade é que somente pode enxergar para o alto, onde aponta o nariz — as pálpebras, conclui, são transparentes para os morto, quem diria?, mas, por algum motivo, a visão periférica dos cadáveres não funciona, é perdida de imediato como a fala, da qual se ainda gozasse poderia explicar a elas o que ocorria. Tratava-se de uma promessa de mesa de botequim (na verdade, de bar, porque sua boemia não frequentava bodegas, mas o conteúdo do acordo era semanticamente mais digno deste do que daquele): dentre os dois amigos de algumas ocasiões, o que morresse primeiro seria de imediato homenageado pelo outro com a sua arte. O pintor ofereceu ao cineasta um óleo sobre cartão, mas, por ser muito mais velho, sabia que eram maiores as chances de ganhar um filme. De modo que, conhecendo as excentricidades do jovem (homem feito, mas para ele um garoto quarenta anos mais novo), já esperava com certa ânsia que adentrasse o solene velório com equipe de filmagem e aparelhamentos para que o tributo se desse in loco e de imediato.
Reitere-se, porém, que a família enlutada nada entende porque, sendo uma promessa de botequim que teria acontecido em um bar (talvez do Catete ou da Lapa, onde os conheceu todos; ou nem isso, porque pode ser que o bate-papo tenha se dado por telefone com cada um em sua casa tomando a bebida que lhe aprouvesse... champanhe, nescau, uísque, paraty; ou, antes, em um pub europeu ou mexicano em algum encontro fortuito que as interseções de suas trajetórias artísticas pelos salões do mundo concebessem — a verdade é que nem lembra mais, pois a memória de quem morre começa a se perder, embora mais lentamente do que a fala ou a visão periférica, o que não se perde é a capacidade de encadear orações em um período sintático, fruto talvez do salto para a eternidade, frases curtas são na realidade reflexos de nossa consciência da finitude), repita-se, sendo uma promessa de botequim que teria acontecido em um bar, ele nunca a revelou aos seus, é o tipo de colóquio embriagado que ninguém levaria a sério mesmo. Mas sabendo como é o denodado rapaz, conhecendo seu inquieto estado de espírito, sempre teve a certeza de que ele cumpriria o trato sem pudores tampouco limites.
E aqui está ele, falando deveras alto e acelerado com a equipe de filmagem, numa postura quase performática, como faria na direção de um curta como outro qualquer, trazendo ao clima de literal velório outras inesperadas potências: Estrela!, abre as janelas para iluminar a cena, Carneiro!, enquadra um panorama geral com o caixão ao centro, agora começa a filmar da esquerda para a direita, dá distância para pegar dos pés à cabeça, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, corta!, Carneiro, Carneiro!, filma o marechal se despedindo, filma o marechal se despedindo!, filma ele saindo, filma tudo, Pudim!, o foco do marechal ficou ruim, vá atrás dele e manda ele voltar para fazer tudo de novo. É óbvio que o Marechal, amigo de infância do defunto dos tempos da chácara do avô em São Cristóvão, não voltará, o que o morto lamenta pois ele havia dito em seus ouvidos palavras bonitas, embora com aquela cerimônia típica do marechalato. De todo modo, nesses tempos, não é qualquer comunista, mesmo não praticante, que merece esse protocolo de luto de um militar de alta patente, com direito a carinho nas mãos habilidosas do artista, de maneira que avalia que o discurso exemplar teria merecido um digno registro, até como panfleto democrático.
Sobre o documentário em produção acerca de seu próprio enterro, ele especula que será um sucesso e ganhará prêmios e terá muito mais público do que as poucas dezenas de pessoas que ainda acompanharão o seu cortejo no cemitério. O cineasta está ao lado do caixão agora e, enquanto registra imagens do amigo e de seus visitantes, bate descontraído papo com o defunto sobre aventuras passadas que viveram, mulheres que os quiseram ou não, uns porres de tequila, inesquecíveis feijoadas, aquele carro que perdeu o freio de mão, tudo sempre seguido de um Te lembras?, Te lembras?... o pintor, contudo, já não consegue recordar nada, estava mesmo correto um romance relativamente recente lido por todos, mas cujo nome ele já esquece também: aparentemente, morrer não é um instante perfeitamente acabado, mas um devir em que a memória vai se apagando.
É quando ouve que uma amiga da filha se prontifica a interceder contra o escândalo e frear o absurdo. A atual esposa, com mais autoridade para a repreensão, é inglesa, daquelas que na juventude achava que o samba era ritmo argentino, deve portanto estar entendendo o furdunço menos ainda do que os demais, desenvoltos no uso e nos caprichos da língua local. E então a moça se aproxima para exigir o cessar do que ela chama de espetáculo mórbido. O pintor entende, é agressiva a postura, mas, no encontro daquelas duas almas vanguardistas de vanguardas quase meio século distantes entre si sem que nenhuma estivesse na retaguarda da outra, sabe que tudo aquilo é um manifesto contra a morte, a única tradição do homem que suas artes anarquistas não parecem ter forças para subverter, de modo que a agressividade é necessária, é aliás incontornável. Deseja forte, como imponente desejo último daquele que no fundo é o dono legítimo dessa festa, que o cineasta consiga convencê-la — a reação do cadáver, aliás, é dar uma risada meio desesperada, que ele sente ainda que ela não se manifeste fisicamente por conta dos músculos já inúteis. Pelo que pode intuir, o garoto se esforça: ele adivinha que o cineasta está até de joelhos implorando compreensão geral e dizendo que o filme ficará bonito, respeitoso, que não faria afinal diferente tratando-se de uma homenagem a um amigo que morreu. É poderoso, conclui da sua condição de pintor falecido, o último desejo de um morto (ou seria o primeiro, dado que os desejos anteriores que teve eram ainda de vivo?), já que parece que a família aquiesceu, mesmo a contragosto — ou conformou-se. Conclui, por outro lado, que o poder de convencimento do rapaz reside não nos argumentos, que serviram apenas para distrair a atenção da moça, mas na atitude de mal esperar resposta para voltar a trabalhar.
E nesse instante o finado é surpreendido pela atitude do cineasta de, uma ideia na cabeça captada pela câmera na mão, subir ao caixão, no registro de um close-up de sua face. Agora não recorda mais nem o nome do amigo, mas ainda admira a sua audácia, pessoal e estética. Compreende toda aquela ação como uma forma de o tentar despertar dos braços trágicos da morte, se não literalmente, ao menos no realismo de uma arte pulsante que recusa a tragicidade iniludível de todo ser. As meninas e senhoras da família só faltam desfalecer. A musa de branco chora muito. Elas encaram a agressão à morte como uma violência a si mesmas e às suas inevitáveis dores da perda, não entendem que a profanação é da própria morte e que ele, embora defunto, não se confunde com ela, não lhe é cúmplice. De pé sobre o corpo, frente a frente com seus olhos, afinal se agacha o cineasta para lhe fazer o colossal favor de retirar de cima do seu rosto aquele véu rendado branco, mortalha filtrante pelicular abstracionista que o impedia de se despedir com clareza das imagens do mundo que tanto empenhadamente registrou, transmudou, tropicalizou, carnavalizou. Tinha observado a vida a óleo, sob mosaicos e murais ou na forma de ilustrações, mas nunca com aquele esfumaçamento lúgubre e, agora sim, mesmo com as debilidades periféricas do olhar, enxerga as zonas de luz nas cores que sempre concebeu — o destaque para o terno azul celeste do próprio amigo que caminha sobre o catafalco, em contraste com os invariáveis fatos escuros de homens formais que em cima dele se debruçaram em monótonas reproduções desde o início da manhã. E o público presente poderia então verificar que o morto até parece sorrir, se não estivessem todos hipnotizados pelo insólito balé do homem azul no palco que é o próprio derradeiro homenageado.
E agora que parece o baile ficar divertido, sairão todos em procissão. É hora de ir embora quando o corpo quer ficar, mas toda alma de artista quer partir — diria um dia outro artista. Segue vendo o que é possível por cima das rosas mesmo após lhe fecharem o féretro — parece que as tampas de ataúde são também translúcidas para os mortos, ninguém esperava que se descobririam tantas coisas interessantes após o passamento. Como planejada estratégia de controle dessa específica cena, o cineasta trouxe consigo um ator, o qual ele ordena que se antecipe e pegue numa das alças do caixão. Também este se destaca dentre os ternos negros porque traja um longo trench coat bege bogartiano. Está à frente, na ponta direita do esquife, e por isso pode ritmar o transporte até o carro funerário segundo o interesse não do ritual funéreo mas da tomada fílmica: Mais devagar, Joel, segura o compasso, agora vem, para, volta um pouco, volta um pouco, cadencia, ritmo normal dessa vez, coloca no carro — e os outros civilizados carregadores se veem obrigados a igualmente obedecer ao diretor de um lado para o outro ou para frente e para trás, porque a alternativa seria largar uma alça e correr o risco de permitir que vá ao chão o caixão cheio de rosas vermelhas e um morto com barba por fazer. Sua musa de branco observa tudo atônita, entre a revolta e a incredulidade. Já no veículo, o falecido pode ouvir que é o próprio amigo cineasta, o grande organizador e comandante do evento, quem dá a ordem Fecha e toca para o cemitério.
O percurso de sete ou oito quilômetros entre o Aterro do Flamengo e o bairro de Botafogo, sua última flânerie pelo urbano dos vivos antes da necrópole, não dura mais que dez minutos, mas é o tempo certo de a memória do morto se deteriorar quase em definitivo. Sentia desde o dia anterior um frio que começara nos ombros, desceu aos poucos e lhe chega afinal aos pés: a morte é como uma frente invernal que toma o corpo de cima para baixo. Não sabe mais o pintor onde está e para onde o levam quando o retiram do carro funerário, tampouco quem são as pessoas ao redor dele — aliás, apenas intui, por puro instinto que não se perde nunca, que é, ainda, um artista plástico. Na comitiva fúnebre, é levado em direção à cova com a mesma indiferença com que foi transportado logo após sair do útero da mãe havia quase oito décadas. Os sons começam também a falhar e caem reduzidos e cacofônicos e distrai-o apenas aquele homem peculiar que se destaca dos demais com seu terno azul claro e que rege com autoridade, todo o tempo, a movimentação geral: Olha a musa do pintor chorando, Carneiro, filma ela de cima a baixo enquanto o padre faz as suas orações, mas movimente a câmera e reproduza com ela os traços redondos e selvagens do meu amigo, e assim, simulam-se no vídeo as linhas fortes do pincel concupiscente, abençoadas pelas palavras sacrais do discurso do pároco.
Era enfim o fim da viagem e por fim o caixão flutua à sua morada terminal enquanto dois pássaros alvos voam escapando leves de dentro da cova: flores tropicais laranjas, amarelas, vermelhas e cor-de-rosa são jogadas sobre ele, encobrindo-lhe por completo e, não obstante o coloridíssimo bloqueio visual, o pintor percebe tudo, sentindo mais do que compreendendo, sob muitas cores, quentes ou terrosas, imaginando a cena exterior como uma pintura a óleo sobre tela em movimento, a paleta iluminada pelo sol carioca, com todos os personagens, não mais carpideiras e autoridades mas sim dançantes saltimbancos e pierretes, trajando branco e azul celeste.
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