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    Contos Conjugados
  • 12 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 25 de dez. de 2024


Fotografia de 1934 de uma escultura em relevo da Roma Antiga
Fotografia de 1934 de uma escultura em relevo da Roma Antiga

Lembro-me de que as dores eram tão prematuras quanto intensas. Deitada na cama do meu próprio quarto, costas e cabeça apoiadas por almofadas, parecia a mim que o teto nunca fora tão baixo e as distâncias entre as paredes tão estreitas. Ao meu lado, apenas outras duas mulheres: Ambrosina, parteira muito bem recomendada por conhecidos e que viera do subúrbio para me atender, trazida com urgência por um deles, dado o inesperado quadro que desenvolvi; e a Professora – minha companheira de trabalho, minha superiora hierárquica, minha conselheira, minha amiga, espécie de segunda mãe, minha sogra... mas sobretudo a minha Professora de sempre, da vida, desde a infância.

Toalhas molhadas em bacias de água fervente, janelas e portas muito fechadas, uma umidade no ar quase concreta a tornar a atmosfera líquida e morna: o cômodo era assim um novo ventre, reprodução ampliada de onde sairia o bebê, mas nesse caso a abrigar toda a cena. Positivamente, a cada contração minha, o ambiente contraía-se por inteiro também, como se o espaço pudesse ser deformado. Uma das mãos da Professora enxugava-me a testa; a outra deixava-se apertar por uma das minhas a cada impulso, de maneira que nossos suores se misturavam nos dedos entrelaçados.

Eu mirava aquela mulher nos olhos sem coragem de dizer que não tinha certeza da paternidade da criança, que não sabia se o seu filho era pai do meu filho. Affonso, na sala contígua, também decerto não desconfiava. Podíamos ouvir sua voz algo tranquila, a encetar prosa, daquelas que servem de distração aos que nada podem fazer que não seja aguardar, conversações ora com algum dos irmãos ou o pai, ora com seus sogros: sons a entrarem abafados no aposento uterino.

Emygdio, que poderia supor a si mesmo como autor da obra em meu ventre, por tantos e tantos anos nem saberia que estive uma vez grávida. Não nos víamos a sete, talvez oito meses. Ele não fazia ideia, não fazia ideia alguma do meu estado. Dessa maneira, a dúvida paterna era um segredo meu – ou que eu supunha apenas meu, sempre haverá alguém que descubra tais mistérios, por investigação ou intuição, com ou sem propósito.

Não cabia pensar nisso naquele instante. Eram devaneios, afinal. As contrações, minhas e do quarto, tornavam-se frequentes e isso era factual. As dores cresciam. Os movimentos da parteira aceleravam. Não tardaria o ápice. “É hora, senhora” foi a frase de Ambrosina que me chegou como um fio d’água aos ouvidos, “força, agora”, pingaram.

E, num piscar de olhos, o que se prometia um evento longo alcançou seu termo.

Eu urrei para fazer força uma única vez.

O bebê nem isso. Não chorou

Poderia interromper aqui a narrativa para iniciar uma nova etapa do texto, a ser por conveniência intitulada “capítulo triste após um de aparência feliz”. Não o farei, não partirei esse relato em duas metades especulares porque ambas carecem de ser apresentadas em sua inteireza, embora o presente comentário já venha a quebrar o fluxo do relato, do que já é tarde para recuar. De qualquer modo, a tudo é possível um exegeta habilidoso atribuir um motivo estético. Antecipo-me. Fica esse parágrafo, que se alonga sem um autêntico fito, a representar o intervalo infinito entre aquele momento em que a criança saiu dos meus braços logo após ter abandonado meu ventre e o seu retorno, o tempo breve mas para mim imenso em que o limpavam, examinavam e agasalhavam. Naqueles segundos, talvez mais que minuto, eu pensava que não me era possível viver longe daquele ser por nem um instante, uma dessas frases de efeito cujo resultado sensível apenas entendemos em circunstâncias intensas como aquela.

Para a criança, contudo, não se tratava de uma simbologia verbal. Não lhe foi mesmo possível viver distante da mãe. Eu mantinha-o vivo enquanto era parte de mim, pelo umbigo que nos unia e tornava uma única vida. Seu corpo ainda quente chegou-me de volta já sem vida. E, por mais que o acalorasse junto ao peito, respirando sobre ele um ainda ofegante ar quente, seu esfriamento era inevitável, primeiro as mãozinhas e os pezinhos, depois as perninhas e bracinhos e por fim o dorso, abrigo de um coração que pulsou tantas vezes em mim mas tão poucas vezes no mundo... apenas a cabecinha cheia de cabelinhos sustinha ainda uma ilusão de vida, se não é na cabeça que todos nós mantemos essa alucinação de que estamos vivos e de que existimos, ou somos.

Passarei todo o resto dos meus longos anos fantasiando que, ao morrer um dia, encontraria afinal o meu filho uma outra vez. Não devo me furtar de dizer – é preciso confessar tudo – que por diversas vezes desejei que esse dia logo chegasse, sobretudo nos tempos mais imediatos ao dia do seu parto e da sua partida. Logo, é essa a minha maior decepção, o que vivo agora é como um novo sentimento eterno de pesar tão intenso quanto o original, se é que o luto é possível aos mortos. Essa solidão infinda que é o aniquilamento da vida, para além de tudo, não somente desengana a última das minhas esperanças como faz nascer em mim uma angústia nova: se estar em lugar nenhum e só, como aqui estou desde que findei meus dias, não me é um merecido ou controverso castigo particular mas, antes, um destino comum a todos os seres que morrem, submetidos ao mesmo protocolo de isolamento, se assim é, repito, se o que caracteriza a morte é essa solidão sem limites, em quais condições e sob que circunstâncias estará essa pobre criaturazinha inocente que, vivendo tão poucos segundos, não desenvolveu, calculemos assim, nenhum tipo de raciocínio ou quaisquer formas de independência, a permitirem que buscasse compreender, como eu tento aqui, o estranho estado de ser apenas pensamento sem matéria?

Eu sei que estou sozinha, nada mais sei mas sei que estou só: não vejo pai, nem mãe, nem Affonso, nem Emygdio, nem ninguém. Nem meu filho. Chorei sua perda por toda a vida, mesmo nos tempos em que todos à minha volta supusessem que eu superara o episódio, mesmo nos momentos em que eu mesma me esquecia do quanto o lembrava. Meu filho, que não chegou a ter noção do que é estar com alguém, saberá algo? Terá saudades de mim, sentirá minha ausência, a sua única companhia de uma vida, ainda que uma vida breve, brevíssima? Cogitará quem fora seu pai ou nem imagina o conceito da palavra, porque existiu somente junto à mãe? Onde estará? Estará em algum lugar? Estaremos ou isso aqui é um não-lugar? Existirá? Será? Meu filho será? Meu filho, serás? És?

As perguntas dos vivos pareciam antes tão complicadas e agora são tolas diante do estado de dúvidas post mortem! Recordo-me de novo daquele dia desgraçado. Ambrosina fez um questionamento objetivo, se queríamos que ela fosse à sala dar a notícia aos familiares ou se preferíamos que a avó o fizesse. Não fomos capazes de resposta. Lembro-me ainda de que, perante o pequeno corpo sem vida do rebento, e jamais esquecerei a cena, olhei seu rosto tentando identificar-lhe a origem. Ao acariciar sua face, a cabeça cabia-me na mão. Abri seus lábios cerrados com os dedos, para ter a ilusão de que falava ou sorria e a fim de guardar alguma lembrança de sua vida futura já impossível, e constatei que sua boca tinha dentes, quatro ou cinco dentes já nascidos: na iminência do fim precoce, seu corpo parecera ter o instinto da pressa.

Cada centímetro de sua fisionomia, mesmo sem vida, ainda que – usemos a palavra mais dura – morta, cadavericamente morta, não permitia hesitar: Emygdio era o seu pai. Seria registrado em cartório duas vezes no mesmo dia, em ambos os documentos sob o nome de Affonso Filho, antes de ganhar o lugar de um novo útero que é a própria terra, no entanto, ao olhar seu rosto, eu tinha a certeza de que o pai era o Emygdio. Na sala ao lado, Affonso nem desconfiava, ocupado que estava então com preocupação outra: o silêncio no quarto. Minha mãe tentava acalmar o genro (nesse instante podíamos ouvir tudo muito nitidamente, porque cá dentro o som já era de velório), mas as palavras não convenciam nem ela própria. Minha mãe optara por não estar comigo na hora do parto, porque vivera apenas um e, por alguma razão desconhecida, dizia-nos sempre, era o único acontecimento da sua vida adulta de que não guardava em absoluto nenhuma lembrança. Daí preferir que eu tivesse a companhia da Professora, que colocara seis filhos no mundo, dos quais cinco vingaram, cuja prática era assim mais oportuna.

Naquele momento, aliás, a Professora olhava-me e eu não saberia dizer se sofria por mim ou espelhava o desenlace de agora na sua experiência pretérita: – Sabes bem, minha filha – disse ela, afinal – Eu vivi mesma desgraça com meu primeiro parto. Outros virão, milha filha, outros virão – falava e tentava retirar de mim o corpo do bebê, ao que eu resistia. Não viriam, ainda que nada em mim apontasse que eu não pudesse mais ter filhos, não viriam outros, do que se pode concluir que Affonso era incapaz de fazer-me crianças.

– Outros virão – reafirmou ela, consternada de uma maneira que sua tentativa de consolo não a acalentava, a mim tampouco. Em toda a vida, eu nunca vira aquela mulher chorar, como se a morte do primeiro filho lhe tivesse secado todas as lágrimas. Aquele instante foi o que mais próximo testemunhei de um sofrimento seu integral e manifesto fisicamente, um conjunto de lágrimas que lhe encheram os olhos sem nunca precipitar pelo rosto abaixo, o suficiente para entender seu máximo sofrimento, talvez duplo, a sobrepor a tragédia presente em sua perda passada, esta a surgir nos interstícios daquela, em palimpsesto.

Tentei aplacar a sua dor, por um pensamento ingênuo cogitei que poderia aplacar a sua dor. Era o mais caridoso a fazer, era inútil e escusável que sofresse junto comigo, não era justo com ela. Disse-lhe, na certeza de que o quarto-útero era um confessionário: – Não sofras tanto, Professora. Não sofras. Ele não é teu neto. Compreendes? Não é teu neto.

E ela respondeu, muito sóbria: – É meu neto, sim, Rosa, basta ser teu filho para ser meu neto.

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Todos esses Contos Conjugados são narrativas de ficção, o que não impede que neles o leitor possa encontrar as suas verdades

(ou as suas genuínas mentiras).

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