Ismael, de costas, apoia um dos pés sobre o paralama dianteiro do landaulet, estacionado na Avenida Rio Branco, na altura da Pharmacia Werneck. Passa das seis da tarde. Enquanto o senador não vem ao encontro da madame, que o aguarda no carro como todo dia, o chauffer abre o vespertino para abreviar os minutos. Comprou-o pouco antes, ao tempo em que a patroa, na Casa Sucena, adquiria livros para sua menina tutelada. Se a intenção de Ismael, contudo, era buscar informações sobre a posse do novo presidente do seu país, esfrangalhado pela Guerra e pela Pneumônica, encontra nas principais manchetes apenas implausíveis notícias sobre a cidade em que agora vive, do hospício local que guarda idosos com mais de 130 anos de idade à denúncia de que o governo proibirá a venda de pães aos domingos. Cansado, pisca duas vezes consecutivas (adormeceu?) para desenredar as letras e verificar se lia bem, porém, entre as supressões de imagens, o efeito é o de elas confundirem-se mais. Décadas depois, sua lembrança, evidente golpe com que a memória estará a lhe assaltar, ainda será a de que, naquele mínimo segundo de visão entre piscadas, se transformaram e multiplicaram as matérias. Mas o fenômeno, por ser menos insólito do que as informações reais, fará com que nunca duvide do que teria visto.
O jovem fecha a folha ao ouvir um estampido que o desperta da leitura (ou do seu brevíssimo transe?). Supõe que a câmara de ar de algum pneumático estourou — evidência de que esses dias, a despeito das conclusões de suas testemunhas oculares, são ainda relativamente mais pacatos, porque estará por vir o tempo em que, nessa cidade, explosões de pneus serão rotineiramente confundidas com tiros, ao contrário de então. Daí que o chauffer dê uma volta pelo automóvel para verificar seu estado. E, na calçada, uma figura bem alinhada esbarra nele ao se afastar do veículo, fazendo com que deixe cair o jornal. É quando percebe, dentro do carro, hirto de terror, o rosto da madame, que tenta sem sucesso abrir o trinco da portinhola. “Ai! que estou ferida!...”, e acusa, “Esse homem me deu um tiro.” Ismael busca com o olhar a figura com quem se chocou, já a metros de distância misturando-se aos transeuntes, e ainda pode vê-lo guardar o revólver no bolso traseiro da calça. E, enquanto curiosos cercam o landaulet para socorrer a distinta senhora, o chauffer imediatamente corre.
Corre Ismael, porque pressente que deve alcançar o criminoso. Vários são os motores de sua reação, instinto de autoproteção, impulso de cumprimento de atribuições na comunhão social. O principal agente de sua atitude, porém, é Helena Luíza, presença constante em seu pensamento. Não se pode permitir a perda daquele bom emprego de chauffer que há poucas semanas conquistou. Não fosse, afinal, o senador julgar ter ele culpa na tragédia que se anuncia. Parece tudo finalmente promissor em sua vida, após esforços — e a razão indubitável disso é Helena Luiza. Haviam sido difíceis os primeiros anos na capital federal desse país em que tentava a sorte com o irmão. Não era mais do que um adolescente em sua chegada ao Rio de Janeiro, migrado de um Portugal que vivia as efervescências consequentes ainda do regicídio e da revolução republicana, o que fazia tudo parecer sempre muito instável. As impressões que chegavam do Brasil no Porto e em Lisboa, pelo contrário, levavam a crer em um Rio que se tornava cada vez mais uma cidade europeia, fomentada por grandes obras da década anterior. Aos seus olhos lusitanos, era um novo espaço de oportunidades. Decepcionou-se um pouco após se estabelecer, como tantos portugueses certamente já haviam feito pelos séculos, constatação que ele porém não elaborara e, se o fizesse, talvez não tivesse deixado sua pátria e sua família. Já no Brasil, trabalhou algum tempo como marceneiro, mas o retorno mal dava para ele e o irmão dividirem com outros conhecidos um quarto na Rua da Alfândega. E tudo piorou depois que o cômodo foi assaltado. No episódio de poucos anos antes, José foi amordaçado por dois facínoras e eles perderam a segurança financeira que ainda abrigavam em seus pertences, inclusive algumas parcas joias de ouro e as 15 libras esterlinas que Ismael trouxe da Europa e guardava consigo para emergências. Havia a necessidade de buscar ocupação mais rentável, contudo ele protelava a tentativa, talvez já acomodado com a penúria. Até que conheceu Helena Luiza. Poupemo-nos das peripécias que permitiram que o pobre português conhecesse a filha de um comerciante de Botafogo que gozava dos confortos de uma posição média, quiçá média alta, na sociedade carioca — são coisas que acontecem casualmente, em um encontro qualquer, numa rua da cidade, espaço metropolitano que permite o cruzamento de todos, com potencial para deixar de ser qualquer encontro, dependo de uma escolha precisa de palavras e de uma medida exata de presença de espírito. Tenha sido como foi, o fato é que a menina Helena Luiza se deixou seduzir pelo janota lusitano. Logo, no entanto, surgiriam da relação as agruras das diferenças sociais, que geravam resistências nos pais, sobretudo no pai da moça.
Ismael pensa em tudo isso enquanto se apressa na busca pelo homem que atirou na madame. Viu que ele pegou a entrada da Rua dos Ourives da joalheria Luiz de Rezende. De certo que pretende escapulir pela outra porta da loja, na Ouvidor, e o chauffer julga mais diligente correr por fora, quebrar a esquina e capturá-lo na saída, antes mesmo que ele cuide disso. Quem será aquele homem, quem poderia a querer matar? A madame, embora excêntrica em alguns aspectos, como pelo fato de criar um macaco que passeia com ela vestido com trajes imperiais e faz refeições numa cadeira infantil, além de ser afrancesada de modo até caricato, é por outro lado um poço de bondade. Na chácara da Rua Voluntários da Pátria em que Ismael foi viver (num quartinho de fundos ainda assim muito melhor do que o antes alugado), o chauffer testemunhava o altruísmo diuturno da senhora. Criava vacas holandesas, mas doava praticamente todo o seu leite para as crianças enjeitadas na roda da Santa Casa. Nunca engravidou, mas adotou oficialmente a filhinha do cozinheiro da casa. O chauffer lembra então de um alfaiate com quem chegou a dividir o cômodo da Alfândega, um comunista que criticava essas ações filantrópicas alegando que a igreja incentivava a burguesia a fazer caridade para a família dos operários a fim de evitar que tivessem coragem de fazer a revolução do proletariado, segundo ele. Mas Ismael não consegue verificar essa maldade calculada nas ações da patroa. É boa para todos, sem distinção, e parece se dar muito bem com o marido, não menos extravagante, famoso por vestimentas como fracks, chapéus coco e óculos pretos que proporcionam muitas charges políticas nas folhas. É um homem intenso o Almirante que veio do norte do país para o Senado, lugar tão longe e exótico que o torna mais estrangeiro para o Rio do que o próprio português. Mas Ismael admira mesmo a madame e, apesar do convívio breve, de poucas semanas, guardará como imagem mais impactante sua a ocasião em que, ao entrar no salão principal do palacete da chácara, a viu subir as escadas principais, seguida de perto pelas araras vermelhas criadas soltas pela casa, rodeando-a como se fossem extraordinárias manifestações angélicas, numa versão brasileira de representação de santidade.
O chauffer aguarda alguns segundos mas não avista o homem sair pela Ouvidor. Teria sido o malfeitor mais ágil? Não pode ser possível, porque, locomovendo-se por dentro da loja, precisa o homem vencer o anteparo dos clientes que tomam a joalheria naquele fim de tarde e os desvios com certeza aumentam o percurso. Teria se distraído então Ismael com as lembranças que lhe tomam a mente, todas ao mesmo tempo? Não se perdoaria nesse caso. Não pode permitir que o senador pense que ele tem alguma culpa no incidente. Resolve entrar e fazer o caminho contrário, de certo que o agarraria ainda no interior do local. Precisa pegá-lo, caçá-lo como um coelho na toca. Não pode perder esse seu emprego, logo agora que mora na Voluntários, tão próximo da casa da família de Helena Luíza, na Assumpção. Dela veio a providente ideia de que, nesse mesmo ano, fizesse Ismael o exame de motorista para conseguir a permissão para dirigir. Tinha ele prática mas ainda pouca idade, o que o levou a aumentá-la de modo forjado — não trazia consigo documentos originais portugueses, de modo que apenas a declarava e de fato tinha aspecto que lhe conferia alguns anos a mais... assim, abreviou os prazos e conseguiu tanto a carta quanto, logo à frente, a colocação no lar do senador, há algumas semanas. Podia, desde então, pensar, planejar, sonhar com ela casar, o que acontecerá em poucos meses. Criarão três filhos, um rapaz, duas moças, amparados todos com seu ordenado de motorista por toda a vida. Será, pois, um homem! Voltará a ter família! É claro que não pode usufruir ainda da certeza desses acontecimentos — fatos apenas o são quando passados, inexistem fatos futuros — de forma que o pobre chauffer carece de se empenhar na captura do bandido, cercado das dúvidas sobre o seu destino, o qual o episódio tem potencialidade para modificar. Não pode perder esse providencial emprego. Não vá o senador lhe atribuir alguma culpa nisso tudo.
Caminhando pela loja, Ismael se confunde com as belas peças de ouro que o cercam. São, em sua maioria, muito mais vistosas do que o cordão ou a medalhinha que perdera no assalto ao quartinho da Alfândega. Gostaria de um dia poder presentear Helena Luiza com alguma delas. Ela completa dezenove anos em quatro dias. Imagina a surpresa que seria se lhe pudesse oferecer uma dessas joias... e a reação que teria o seu pai... bobagem! antes de supor que subira na vida, acusaria o rapaz de roubo, sem titubear. Nesse pensamento, chega novamente à entrada da Ourives. Embalde! Não descobre o criminoso e outra vez não tem certeza alguma se não se distraiu quando não o devia fazer. Perde esperanças. Conclui que fracassou. A loja é esvaziada enquanto acodem a ferida madame, cliente costumaz do local, ali dentro, sentada em uma cadeira. Alguém trouxe um profissional da Werneck para o socorro mais imediato, enquanto a Assistência não chega. O chauffer observa penalizado o seu vestido azul manchado de sangue. Ele não sabe que apesar do bom estado geral de que agora parece gozar — não pela falta de gravidade do ferimento mas pela força de espírito comum à personalidade da madame — ela morrerá no dia seguinte. Não pode ter ciência tampouco de que a situação o impressionará de tal forma e o evento o marcará com tamanha intensidade, que, em alguns anos, ele usará o nome da patroa para batizar a filha, em uma sincera homenagem sua.
O senador adentra o lugar e é possível ver os olhos saltarem por trás dos estranhos óculos negros que sempre usa, de onde pingam as lágrimas. O chauffer já engolia em seco para explicar ao patrão que falhou em impedir a escapada do bandido — não vá ele achar que Ismael tem alguma responsabilidade — quando volta os olhos para fora e finalmente avista o fugitivo, que se mistura uma vez mais à multidão, como quem ali estivesse atraído pela confusão sem dela fazer parte, estratagema inteligente sem dúvida, mas de enorme frieza de ânimo. Uma centelha então desperta a alma do jovem português e o rosto de Helena Luiza ressurge motivador sob os seus olhos. Um funcionário já desce a porta da loja para que a madame possa aguardar o socorro com privacidade, ou a fim de proteger os produtos que ali se comercializam da multidão que ameaça invadir a loja para verificar de perto a continuação da história, por isso, Ismael precisa lançar-se para fora com celeridade, abaixando-se e mesmo sustentando brevemente a porta, atrasando por um segundo o seu encerramento, ganhando o tempo preciso de sair da ourivesaria. Esgueira-se o chauffer em meio às pessoas, na ânsia cada vez mais incontrolável de capturar o homem. Supõe que possa mesmo se tornar um herói. Quem sabe não lhe concedem cidadania como prêmio pela bravura? Não pensa nisso pela questão burocrática em si, mas porque a publicidade pessoal que o evento legaria a ele poderia amainar os olhares enviesados da família de Helena Luiza para o seu namoro. Lembra então que antigos empregados da chácara disseram que a madame havia rompido com a própria família para se casar com o senador, antes mesmo de ele ser deputado, porque seu aristocrático círculo não aceitava o homem moreno e sem estirpe por que ela se apaixonara. Conclui que tão logo precisa contar isso a Helena Luiza, uma história assim romântica e de fim tão promissor encorajará que ela tenha reação análoga, se preciso.
Finalmente, Ismael alcança o assassino e o segura pela gola do paletó. “O que quer de mim? Não fiz nada!”, o bandido, surpreso, encara-o de perto. O homem apresenta hálito alcoólatra, crispam-lhe os olhos cocainomaníacos, está detraquê, revela estigmas de degenerescência que, apesar dos movimentos racionais e mesmo engenhosos que acabou de realizar, evidenciam um estado mental anômalo — e tudo isso contrasta com a forma elegante como se veste e se porta. No assombro que a expressão do outro lhe desperta, ambígua entre o irônico e o desconexo, Ismael chega a soltá-lo. Mas ele não faz mais menção de fugir, ao invés disso começa a criticar ferozmente um texto teatral de Oscar Lopes, o que ou o afasta definitivamente da realidade circundante ou representa alegórica explicação do crime-tese: “Há alguma diferença entre dois cadáveres, um de casaca, outro esfarrapado, ou entre dois criminosos, um de unhas polidas e outro que as tenha rudes e maltratadas?”, é o que questiona o criminoso. Na confusão de frases, algumas em francês, às vezes ele diz coisas que parecem significar tudo, como metáfora com que vela a verdade que ainda acha cedo para dizer.
Diante daquela fisionomia que o janota português não esquecerá nem em setenta anos, não lhe restarão dúvidas de que serão falhas todas as hipóteses iniciais levantadas quanto ao motivo do crime — desde a de interesses financeiros porque o autor colecionava promissórias vencidas, até a de crime político, passando pela de vingança pessoal, vinculada ao fato de o assassino trabalhar como taquígrafo do Senado, próximo portanto ao marido da vítima, além mesmo de algumas difamadoras da honra da madame, essas descartadas prontamente, como as demais logo adiante, dissipadas pela evidente loucura daquele homem e o seu absoluto estado crepuscular de consciência no momento em que agiu. Os alienistas logo constatarão o mesmo sem dificuldades: não há razão para o crime, que ocorre em função de uma privação da mente do criminoso, que sofre de epilepsia e o cometeu fora de si. Mas a sede de vingança da sociedade não o livrará da condenação à prisão que o júri lhe imputará, em detrimento de envio a um manicômio, onde talvez fizesse companhia aos centenários que lá se abrigavam, como Ismael viu no vespertino. No hospital, conforme se contará, diante da carta da esposa do assassino lida pelo senador e que rogará por clemência, a madame proferirá como últimas antes de entrar em coma as palavras “Perdoa, Coração!”, mas o gesto magnânimo, no avesso do esperado, provocará ainda mais a vontade de desforra da comunidade carioca, que gritará por severas condenações, Ismael dentre esses.
Um guarda-civil aproxima-se no instante em que o chauffer retira do bolso traseiro da calça do criminoso o revólver que oculta, arma de pequeno calibre e já velha na qual logo se constata uma das cinco cápsulas deflagrada. “Eu sou um monstro fantasiado em gente”, diz o capturado. O chauffer verifica a ourivesaria e vê que a Assistência retira a madame, para encaminhá-la ao pronto socorro. Corre para o landaulet a fim de seguir a ambulância, mas é avisado pelo guarda que deverá acompanhá-lo para depor na delegacia. Tem ainda dever a cumprir. E assim o fará. Não pode correr o risco de perder esse bom emprego. Não vá o senador ter dele desconfianças. Mal pode esperar para contar tudo a Helena Luiza.
Bem inteligente e criativa a história baseada em fatos reais. Sinceramente não gosto muito de tantos flash backs. O vocabulário do século XIX é compreensível, porém torna a leitura mais arrastada.