Cantou pneus no asfalto assim que ouviu o primeiro estampido, desviou do automóvel à sua frente, furou o sinal vermelho e passou a descer velozmente a rua. Pouco adiante, de soslaio, percebeu na calçada à sua direita uma jovem mulher que corria desesperadamente rua abaixo, curvada para frente e muito abraçada junto ao corpo com os seus pertences, um volume que era indecifrável sob a luz das luminárias que fracassavam ao tentar vencer o breu da noite alta. Refletiu se deveria deter-se para ajudá-la ou seguir em frente, preocupado em salvar a própria pele ao invés de ser solidário, afinal tinha família que dependia dele e calculava que qualquer abordagem naquele momento que lhe retardasse a fuga seria de alto risco para si. Todo esse pensamento não durou mais do que um segundo: por legítimo instinto, encostou o carro ao meio fio, quase estacionando mas sem em momento algum perder todo o movimento, esticou-se para abrir a porta do carona com a mão direita empurrando-a com força e gritou “Entre!”, enquanto ouvia mais tiros, já naquela altura sem saber se eram novos disparos ou ecos do primeiro que havia sido efetuado tão próximo aos seus ouvidos que ainda podia sentir o zumbido constante. A mulher pulou para o veículo quase magicamente com uma habilidade que talvez nem ela julgasse ter e ele voltou a acelerar, seguindo a rua que parecia agora descer ao infinito, ansioso por dobrar a primeira esquina para sair da linha de fogo. Não sendo isso suficiente para lhe trazer nenhum alívio, continuou veloz após a curva, ultrapassou outro semáforo, atravessou e desceu um viaduto sobre a linha férrea e pegou a primeira rua que viu rumo a não sabe onde.
Muito gradativamente, foi permitindo que o ponteiro do velocímetro abandonasse os valores mais altos, buscando números consonantes com o seu batimento cardíaco, que também ia, pouco a pouco, diminuindo. Somente vários minutos depois, com certa normalização dos ritmos, olhou para a mulher ao seu lado e percebeu que os pertences que ela tanto protegia, agarrado aos braços, muito junto ao peito, era na verdade um bebê. Ela também olhou para ele e pela primeira vez balbuciou, com pouco sucesso, a palavra “obrigada...”, o que tentou dizer mais duas vezes, na terceira convencendo-se de que se fizera entender. A mulher então finalmente separou do seu corpo a criança, algo preocupada em tê-la sufocado com a sua máxima proteção, agasalhou mais a sua cabeça e passou a observar o seu menino com um olhar que era ao mesmo tempo de profunda ternura e absoluto alívio, saciando a saudade que precipitadamente sentira.
— Eu posso deixá-la em algum lugar? — ele perguntou ao mesmo tempo em que ofertava a gentileza.
Ela então examinou ao redor pela janela do automóvel, observou as casas baixas que não mais se assemelhavam aos edifícios do local em que caminhava antes, as datas antigas gravadas em suas fachadas, e disse, num tom admirado e feliz: — Eu moro a dois quarteirões daqui.
Ele, que já não sabia onde estava e perdera mesmo a noção de tempo, ofereceu levá-la até a sua casa e dessa vez o “obrigada!” já foi perfeitamente audível. Mas quando entraram na pequena rua de paralelepípedos que a jovem mulher indicou, o motor do carro falhou. Ele, ainda no embalo da antiga força já extinta, permitiu que o veículo chegasse até a beira da calçada e freou em definitivo. Tentou ligá-lo novamente, sem nenhum sucesso, apenas um clique se fazia ouvir. Talvez algum dos tiros o tivesse atingido em algum ponto vital. Saíram ambos. A noite refrescava-lhe o suor que ainda escorria por todo o seu corpo, mas, ao mesmo tempo, a escuridão que se empunha impedia que ele averiguasse se havia algum dano na lataria do automóvel ou algum líquido empoçado sob ele a justificar o defeito, porque a iluminação pública, gerada por postes muito espaçados com lâmpadas de luz intermitente em grandes bocais em forma de flor, era ali ainda pior do que na via expressa e mais moderna em que iniciara a fuga.
— Eu moro ali — ela apontou para alguma construção, uns trezentos metros à frente, pouco distinguível àquela distância — Você pode telefonar para um reboque da minha casa e, quem sabe, beber um copo d’água.
Ele procurou automaticamente algo no bolso sem saber ao certo o quê; encontrando nada, aceitou o convite. Caminharam lado a lado, no mesmo compasso, até o pequeno prédio verde de dois andares em que ela residia. Um alto muro impedia quase por completo de vê-lo por dentro, exceto pelas telhas francesas vermelho-barro, que se destacavam distribuídas de modo elegante ao cobrir a construção. Quando passaram pelo portão, todavia, e a jovem mulher acendeu a luz do pequeno mas simpático hall de entrada, ele viu o chão formado por cacos irregulares de cerâmica vermelha salpicado de outras pequenas peças desiguais amarelas e pretas, o espaço redondo de alvenaria à direita ornado com os mesmos pedaços cerâmicos cheio da terra escura em que alguma vegetação doméstica se distribuía de forma aprazível, a porta e a janela do apartamento térreo logo à sua frente com a luz interna coada pelas pesadas cortinas e, à esquerda, um corredor que levava a uma escada em caracol ao fundo, também de alvenaria e igualmente avermelhada pelo mesmo piso que dominava todo o caminho. E tudo lhe era estranhamente familiar.
Ela trancou o portão depois que ele entrou e dirigiu-se à escada ao fundo. Foi seguida por ele. Enquanto subia os degraus triangulares, meio tonto pelo seu movimento circular embora fosse breve o percurso, ele compreendeu repentinamente: — Eu vivi aqui.
— Desculpe-me? — ela parou, já no segundo andar, num pequeno saguão que levava a duas portas à direita e duas à esquerda, cada dupla referente a um dos dois apartamentos superiores.
— Eu disse que morei nesse prédio. Desde quando há aquele muro alto na frente? Não era um gradeado baixinho, ornado, simpático, pintado de amarelo, talvez de branco?
— O muro deve ter uns quinze anos — explicou ela, algo intrigada mas se divertindo — Por causa do aumento da violência, você sabe... é menos estético mas é mais seguro — e colocou a chave no trinco da primeira porta à esquerda.
Entraram pela diminuta cozinha da residência: os azulejos brancos, o piso áspero, a mesa sem pernas que não passava de uma plataforma retrátil azul aparafusada na parede com dois banquinhos da mesma cor, aproveitando bem o espaço exíguo... Não havia dúvida! — É incrível, eu morei exatamente nesse apartamento.
— Quando? — ela quis saber, com alguma ambiguidade na voz, como se escondesse uma verdade que somente ela alcançava.
— Há mais ou menos quatro décadas. Devo ter me mudado daqui com os meus pais quando eu tinha ainda uns três anos de idade. Mas agora eu me lembro muito bem daqui.
Ela riu, talvez não cresse, essas construções antigas do subúrbio são mesmo todas bastante semelhantes: — Muitos inquilinos moraram nesse apartamento antes de nós, pelo que sei, e eu nunca soube nada sobre nenhum deles — disse num tom de simpático lamento.
Venceram com não mais do que três passos o pequeno corredor, ignoraram o banheiro na porta à esquerda e alcançaram a sala, de onde se viam quatro passagens: a porta à direita que levava de volta para fora do apartamento, o vão em frente que dava numa pequena varanda repleta de samambaias, a porta à esquerda dessa que ligava ao quarto principal em que se entrevia uma cama de casal forrada por uma colcha de crochê, e ainda uma pequena entrada no canto oposto da sala que levava a um cubículo que completava a planta retangular do apartamento ocupando o espaço por trás do banheiro, idealizado originalmente como depósito mas que era improvisado como o quarto do bebê. Tudo isso ele observou a partir da penumbra da luz da cozinha, porque a mulher não chegara a acender a lâmpada da sala, de modo que pouco se podia identificar o desenho de L’s sequenciados formado pelo assoalho de tacos de madeira.
— Aí está o telefone — ela apontou, enquanto se afastava para levar a criança ao seu quartinho — Faça o contato que precisar.
Ele tirou o fone do gancho como se fosse um movimento usual, mas, por algum motivo, titubeou sobre como utilizá-lo. Colocou o dedo indicador nos vários orifícios numerados de um grande disco e girou-o algumas vezes. Escolhia, todavia, números aleatórios, porque na verdade não tinha uma sequência memorizada para usar naquele instante, tampouco, na semipenumbra, conseguia enxergar os algarismos. Sentia-se confuso e com pouco ar. Para respirar, caminhou até a varanda, que ele supunha dar para a frente do prédio, mas olhando por trás das samambaias e sobre o pequeno parapeito de tijolinhos vazados, embora julgasse ver a cada vez mais escura rua de onde vieram, não mais percebia o muro. Não sabe ao certo quanto tempo ficou ali, mas sua boca secava sensivelmente e a promessa anterior de um copo d’água, que não havia se concretizado, parecia-lhe agora providencial.
Ele recuou e caminhou até o cubículo-quarto, de onde podia ver a luz acesa. Não havia porta, apenas uma cortina com motivos infantis separava o cômodo do espaço contíguo. Lá dentro, um pequeno armário branco de laterais pintadas num vermelho vivo fazia conjunto com o berço também bicolor. A luminosidade, amarela e forte, exigiu que ele esperasse alguns segundos para que seus olhos se habituassem. Confirmou então que a mulher não se encontrava lá, mas a criança estava em seu leito. Ele se aproximou. Deitado de barriga para cima, o bebê, que não tinha mais do que oito meses, segurava os pés com as mãos e os levava à boca, soltando grunhidos de alegria quando conseguia mordê-los. Contrastava, porém, com essa serenidade da criança o fio de sangue que lhe escorria da testa, a brotar de um orifício perfeitamente redondo.
Atordoado com a cena, ele saiu do quarto do bebê em busca da mulher. Foi preciso agora acostumar de novo os olhos à pouca luminosidade, do que ele se conscientizou ao bater com força a canela em uma baixa mesinha de centro em que havia um elefante branco de louça. Na sala, agora praticamente escura porque mesmo a luz da cozinha estava apagada, a única fonte de aparente movimento que pôde identificar vinha do quarto principal da casa. Ele caminhou até lá mais devagar, para não esbarrar em mais nada, receoso de invadir alguma intimidade, porém apreensivo por avisar sobre a criança.
A porta estava encostada e uma tênue iluminação saía do quarto, uma luz vermelha de abajur. Ele empurrou a porta muito devagar, com algum receio e sobretudo vergonha, uma vergonha quase infantil. A mulher, sentada de costas em frente ao espelho da penteadeira do lado oposto ao da cama de casal que ocupava grande parte do cômodo, trajando uma camisola branca e opaca que lhe cobria quase todo o corpo sem contudo perder o atributo da leveza, penteava os cabelos negros e curtos e não dava pela sua presença. Ele tentou chamá-la, mas foi a sua vez de perder a voz. Entrou então no quarto de paredes encarnadas, em que uma atmosfera parecia dar liquidez ao ar. Na impossibilidade de alcançá-la para lhe tocar e chamar a sua atenção, flutuou sobre a cama, onde parou de joelhos, por trás dela, sentando sobre as pernas. Ergueu a mão mas interrompeu o movimento. Por sobre o ombro da mulher, ele divisou a sua própria face ao espelho, o qual repentinamente diminuiu de tamanho, reduzindo-se a um pequeno retângulo mais ao alto, em que ainda podia distinguir, pelos seus olhos semicerrados, sua cabeça imóvel apoiada no encosto do banco do carro, iluminada pela luz intermitente do semáforo vermelho. Em sua testa, de um orifício perfeitamente redondo, brotava-lhe o fio de sangue.
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