"Um novo amigo é um fato estarrecedor. Eis a grande verdade!: — vivemos num mundo sem amigos e repito: — a nossa época é de impotência do sentimento. E o que acontece? Acontece que, hoje, o que chamamos de 'convivência' é uma permuta de solidões."
(Nelson Rodrigues
Jornal da Tarde, 04/11/1968)
Por pouco menos de quatro anos, foram vizinhos na mais precisa definição da palavra, já que suas casas ocupavam terrenos contíguos, separados apenas por uma mureta que não alcançava um metro e meio de altura. Por razões, todavia, que não são de todo claras e creditadas por isso a casualidades, nunca travaram conhecimento mais próximo. O fato é que ambos não eram hábeis para construir amizades, as que cultivavam haviam nascido por iniciativa da outra parte, o que ali não parecia possível, por paradoxo, em função dessa afinidade dos dois temperamentos.
É verdade que saíam para o trabalho diário no mesmo horário e, na sincronia com que chegavam aos automóveis, estacionados lado a lado na larga rua de paralelepípedos do subúrbio em que viviam, enquanto ajeitavam o nó da gravata ou guardavam a maleta no banco do carona, cumprimentavam-se com cortesia, os habituais bons-dias, bons-trabalhos, boas-semanas, às vezes lindas-manhãs, mas a isso limitavam-se. Prolongou-se o contato somente em uma ocasião, quando a bateria do velho carro do vizinho amanheceu descarregada e Roberto acudira-o fazendo uma ligação em paralelo a partir do seu Omega de primeira mão, adquirido recentemente; durante todo o tempo, porém, foi mantido entre eles um tratamento categoricamente formal.
Em eventuais domingos, no entanto, a relação fantasmática encarnava-se, embora percorrendo o viés da diferença. Roberto havia descoberto que o novo vizinho da casa ao lado era torcedor do Fluminense quando o ouviu comemorar um gol sobre o seu Flamengo nos minutos finais de uma partida. Como não era a primeira vez em que o time tricolor jogava desde a mudança do outro homem para o bairro, Roberto sentiu que o alvoroço repentinamente efusivo poderia ser uma resposta à sua própria comemoração anterior, ocorrida ainda no primeiro tempo do jogo. Não costumava ser discreto nesses momentos e era possível que algumas expressões que gritara tivessem sido confundidas com provocação, ainda que não houvesse como saber até então a preferência clubística do agora conhecido adversário. O fato é que a festa vizinha parecia se dirigir de modo específico à sua casa, à guisa de contragolpe, já que o homem abriu justamente a janela lateral que dava para a mureta que divisava os terrenos enquanto deixava a sua alegria evadir ao espaço. O resultado de empate daquela ocasião não trouxe então consequências maiores tampouco prorrogação das celebrações de qualquer um dos lados, mas estava fundado a partir daquele dia o confronto, algo sigiloso, algo solene até, entre os dois homens.
Daí por diante, toda tarde de Fla-Flu colocava em dúvida o tradicional caráter sacrossanto dos domingos. Roberto fazia barulho nos gols rubro-negros e o torcedor tricolor retribuía em todas as oportunidades. Nunca, porém, falavam-se diretamente; pelo contrário, calavam-se no momento da farra rival, se não por respeito ou mesmo desgosto, sobretudo no intuito de não se instalar nada que parecesse discussão, para o que não tinham afinal intimidade. A mulher de Roberto percebia a lógica da burla e advertia o marido de que não criasse inimizade com os novos vizinhos, pois estabelecera relação já amigável com a esposa do outro, mas ele pensava que ela não compreendia o código das brincadeiras entre torcidas concorrentes e as fronteiras civilizatórias que afinal esse estatuto socialmente internalizado costuma impor. Ademais, a própria ausência de familiaridade entre os dois parecia protegê-los de acirramentos.
Ocorre que as troças foram acumulando-se nas dezenas de meses que se seguiram. Pelas manhãs, eles cultivavam o ritual dos bons-dias e das boas-semanas, mas Roberto passou a encontrar em sua porta, nas segundas-feiras que sucediam vitória do Fluminense contra o Flamengo, o exemplar cor-de-rosa do jornal esportivo da cidade, em geral arrumado para que estivessem bem à vista manchetes como “Fluzão dá um banho no Fla”, a enaltecer cada conquista. O vizinho, que nesses dias acordava mais cedo para ir à banca, ao invés de partir diretamente para o emprego após a entrega do jornal, fazia questão de retornar à casa para sair novamente apenas no costumeiro horário em que se encontravam, certamente no intuito de instalar alguma dúvida sobre sua autoria no grego presente e também testemunhar a efetivação da pilhéria.
Em resposta, Roberto, por sua vez, abandonou o radinho de pilha de estimação que ainda usava grudado ao ouvido para acompanhar as pelejas e trouxe finalmente da loja de eletrodomésticos em que era sócio o mais moderno aparelho de som 3 in 1 que havia, passando a colocar uma das caixas acústicas na janela de casa e a aumentar o volume nos gols do Flamengo. Quando seu time fez três gols para superar uma desvantagem de dois, ousou ao fim da partida posicioná-la sobre o próprio muro, no limite máximo de uma invasão domiciliar que tecnicamente não se concretizava, obrigando o vizinho, para proteger-se do estrondo que lhe tomava a propriedade como o grande Alexandre, a fechar toda a casa, apesar do calor daquele início de noite e da evidência externa de que sua residência não dispunha de aparelho condicionador de ar.
Quando o Flamengo repatriou um craque brasileiro mundialmente consagrado, o outro torcedor acusou o golpe e instalou, pelo seu lado do terreno, uma longa sequência de folhas de compensado para improvisar uma barreira que estendesse em mais de metro a altura da mureta entre as residências. As duas esposas, que conversavam nas manhãs em que lavavam roupa ao mesmo tempo nos fundos das casas e então não podiam mais se ver daquela posição, lamentaram a muralha, como a chamaram, ao se encontrarem no retorno da feira: Roberto parece se transformar em outro homem por causa de futebol, Arthur também e eu não compreendo esse fanatismo bobo, Garanto que ele não é assim normalmente e peço desculpas, Meu marido também é em geral um homem pacato, Talvez fossem vizinhos normais se torcessem para o mesmo time, Ou se gostassem menos de esportes e preferissem músicas ou filmes ou política.
Mas não durou muito a protética expansão do muro. No primeiro empate sem gols, o vizinho certamente concluíra que, como se diz, não seria o diabo tão feio quanto almejava parecer, porque no dia seguinte as folhas de compensado haviam desaparecido. Realmente, os jogos ulteriores, com vitórias do Fluminense, justificariam o despertar do seu otimismo. Assim foi, e por mais cedo que Roberto tentasse sair de casa no início da semana o jornal cor-de-rosa sempre chegava antes ao chão de sua varanda. Uma partida de sete gols, em que o Flamengo estivera três vezes à frente no placar e acabou derrotado no fim, constituíra verdadeira batalha de festejos: de novo caixa de som sobre o muro, desta feita as duas, mas recolhidas às pressas antes do fim, substituídas pelo carro do vizinho trazido até o quintal para que o rádio vazasse pelas portas abertas a reprise da narração de todos os tentos do seu time, com a voz do locutor acompanhada dos agudos e graves da buzina paquerinha do Fusca 79.
Roberto achou que a situação seria diferente numa partida decisiva que veio a seguir, mas àquela tarde chuvosa um inusitado, mirabolante, extravagante gol do Fluminense no fim do jogo desempatou a partida e tornou-o campeão da cidade após anos sem título, desvairando por completo o vizinho. Juntaram-se ao som do automóvel e de sua buzina um estoque sem fim de morteiros e ainda, alocado na varanda de sua casa, um conjunto de bateria que nitidamente ele não fazia ideia de como tocar e que arranjara apenas para fazer mais estardalhaço. Roberto tentou sair de casa, mas não queria arriscar andar na rua e lidar com a chacota de outros vizinhos torcedores de distintas agremiações e a alternativa segura e privada de um giro de carro foi vetada pela esposa, que escondeu suas chaves para não permitir que dirigisse após ter acabado de esvaziar tantas garrafas de cerveja.
A pândega adversária na casa ao lado não tinha fim e, no auge do seu azedume, Roberto, ao primeiro minuto após as 22 horas, ligou para a polícia, apelando à inapelável Lei do Silêncio. A patrulha chegou logo e ameaçou apreender do Fusca à bateria se o prejuízo à ordem não cessasse. Acontece que o vizinho, que nem era dono dos instrumentos musicais e precisava devolvê-los sem avarias, também estava bastante embriagado, desacatou aos guardas e findou conduzido à delegacia. A mulher condenou Roberto, disse que avisara, que conhecia a pobre da vizinha e sabia que o casal ao lado eram pessoas trabalhadoras que viviam sem confortos e mesmo com algumas dificuldades e que ele devia ter vergonha de mandar para a cadeia alguém honesto e por motivo tão fútil quanto um jogo de futebol.
Ora, ele não chamara a polícia para prender o outro, queria apenas acabar com o furdunço, o cárcere, se o caso fosse, seria responsabilidade do próprio vizinho, mas, àquela altura, as palavras da mulher pesaram-lhe a consciência, especialmente porque ele já estava em uma etapa sempre mais triste de seu processo de embriaguez. Pelo basculante da cozinha, o olhar clandestino buscava verificar o retorno do homem, deparando-se minuto a minuto com a casa ao lado apagada. À meia-noite, já mais curado do pileque, liberado para usar o carro, foi à DP. Percebeu a mulher do vizinho na calçada, desviou-se com sucesso e conseguiu chegar ao delegado. Roberto, no entanto, não podia solucionar a questão retirando a queixa, porque a fizera anonimamente e o infrator afinal havia sido pego em flagrante; a prisão, ademais, não se dera pela barulheira, mas pelo desacato. O chefe de polícia estava irredutível e disposto a liberá-lo apenas no dia seguinte, porque o homem reproduzira as má-criações em sua presença e, além de tudo, o delegado também torcia para o rubro-negro e a chegada do tricolor foi encarada por ele como oportunidade de desforra. Não restou a Roberto alternativa: abriu a carteira e pagou a fiança, escapulindo dali sem ser visto e antes que o outro fosse posto em liberdade.
No raiar da segunda-feira, Roberto abriu a porta ainda com a cabeça pesada pela noite insone e o efeito da ressaca. Apesar de tudo, o vizinho não se atrasara para o trabalho e saía de casa no mesmo segundo. Seu rosto amassado e a gravata mal ajambrada confirmavam a noite difícil. Roberto temia que o homem tivesse certeza de sua culpa na prisão e, pior, nem desconfiasse de sua atuação na soltura, o que poderia fazê-lo reagir de modo imprevisível, até violento. Mas dissiparam os receios os bom-dia, bom-trabalho e boa-semana que trocaram ainda por cima da mureta. Roberto dessa vez observou, imóvel na soleira de sua varanda, o vizinho caminhar até o Fusca e partir. Olhou para o chão e não viu o jornal cor-de-rosa. Havia guardado todos os outros e, segundo confessou somente para si, lamentou não ganhar esse último.
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