“E assim como tu resides
nessa gaiola, cingida,
o vasto espaço que sobra
da tua gaiola-ilha
é como outra gaiola
igual que o mar: sem medida
e aberto em todos os lados
(menos no que te limita).”
(“Mulher vestida de gaiola”,
João Cabral de Melo Neto)
Quando se torna intolerável para ela estar sozinha sem poder sair do apartamento, resolve exibir uma mensagem à janela. Avalia as da sala e do quarto, voltadas para a rua, mas pensa que a distância em relação às moradias do lado oposto da Avenida impedirá a comunicação. Ela mesma não é capaz de ler qualquer coisa no prédio em frente ao seu; mesmo a placa com letras grandes que há em um dos imóveis deixa-lhe a dúvida se o oferece para venda ou aluguel. Sente, por isso, que precisa trocar os óculos, cujas lentes perdem potência, mas a expressa proibição legal de que as pessoas deixem o espaço da casa exceto por específicos motivos não autoriza visita ao oculista.
Opta então pela janela da cozinha, que dá para o fosso hexagonal de ventilação do edifício. Duas faces, essa e a do basculante do depósito contíguo, são do seu imóvel. Nas paredes seguintes, a dupla de lados, fechando o estreito hexágono de dois metros de apótema, multiplica-se por três, sugerindo a existência de dois potenciais vizinhos de andar, em caso de ocupação dos imóveis. Cada patamar igualmente se desdobra em outros três para cima e para baixo, totalizando sete andares. Lá embaixo, divisa-se uma curva do saguão da garagem, onde há um espelho convexo com a função de dar segurança às manobras dos carros que entravam e saíam do prédio. Não parece mais útil, já que agora praticamente ninguém ou nenhum automóvel transita por ali.
Como você passa por esse isolamento?
Esteve na janela o dia inteiro, sem resposta. Haverá quem veja a mensagem escrita à mão com caneta hidrocor preta? Ela nunca se preocupou em saber se havia moradores nos apartamentos do seu andar nem cruzou com ninguém em corredores, elevador ou outras áreas comuns, de modo que desconhece a resposta. Tenta concentrar-se em suas tarefas durante o dia, sem muito sucesso. Está a revisar uma nova tradução de Ficções de Borges, que parece a princípio correta, mas não traz nenhuma novidade em relação a antecessoras. É provavelmente pior do que outras, mas deve ser mais barato para a editora usar uma nova do que pagar por consagrados trabalhos anteriores.
Ao fim do dia, solicita ao assistente digital a configuração 1: em simultâneo, as persiana se fecham, as luzes se acendem e os quadros genéricos de flores e pássaros, semelhantes aos do escritório, os quais estiveram por todo o dia projetados na parede atrás da escrivaninha, são modificados por uma fotografia antiga sua com os pais e uma Composição de Kandinsky, enquanto o silencioso aparelho de ar-condicionado é desligado e uma música suave invade o ambiente. O processo causa sempre o efeito, talvez fruto da iluminação diferenciada, de que o pé direito do apartamento se torne mais baixo, quase opressivo. Quando se dirige à cozinha para providenciar o jantar, depara-se com algo numa das janelas vizinhas. Impressa em papel, na ventana mais à esquerda, há uma mensagem.
Estou só, creio ser também como se sente.
Tenta ávida olhar através do vidro, cuja opacidade, porém, não permite que penetre o apartamento vizinho mais do que centímetros. E nenhuma luz facilita a sua investigação que busca humana companhia. Se quiser delinear o autor da frase, portanto, precisará usar algum sentido outro, menos físico do que mental.
Reflete por toda a refeição sobre o efeito das palavras. Em sua concisão, a frase demonstra a percepção de que, se ela escreveu a pergunta provocadora, é porque já confessava de antemão sua própria solidão. Julga, um pouco assustada pelo repentino desnudamento de si, que, desse modo, e não somente por sua vidraça ser quase translúcida, o interlocutor já sabe mais sobre ela do que o contrário. Esforça-se então para fazer leitura do outro autor e supõe certa empatia no caráter do seu novo conhecimento, concluindo, entre instigada e temerosa, que deve seguir a conversa. De posse do hidrocor, escreve, em tom francamente confessional, porque é melhor revelar seu íntimo com essa clara intenção do que por mero descuido.
Vivo o massacre de minhas ausências todas.
Nessa noite, dorme mal como nunca, assombrada pelo círculo da tela de Kandinsky, que a aprisiona e a segrega no canto do quadro, apartando-a das demais figuras. Assim que acorda, ordena ao assistente digital que altere a opção de imagem na memória, solicitando outra obra de arte no modo aleatório, mas não verifica o resultado porque, atrasada, pede em seguida a opção 2, configurando o ambiente para o trabalho.
Virtualmente no escritório, segue a revisão do texto do dia anterior, dessa vez constatando em determinados contos alguns problemas, que resultam inclusive em alterações de enredo. Em “A Biblioteca de Babel”, por exemplo, um segmento traz um franco equívoco: “A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está previsto nos anula ou nos fantasma.” A antipatia pelo verbo final quase não a faz perceber a liberdade poética que o tradutor se permite ao trocar o literal está escrito por um, impreciso nesse contexto, está previsto. Com os olhos pesados, vai à janela da sala para dar a eles um horizonte em que possam descansar. Encontra mais do que ansiou porque, talvez efeito das lentes dos óculos cada vez mais desatualizadas em relação ao seu progressivo problema oftalmológico, os prédios no lado oposto da Avenida, talvez mais vazia do que antes, parecem ter aumentado sua distância dali. Já não consegue discernir se a placa no imóvel do lado oposto da rua diz “Vende-se” ou “Aluga-se” ou ainda “Fique em casa” ou mesmo “Fique só”.
Volta-se para dentro, com alguma vertigem. Na cozinha à procura de café, por uma olhadela periférica, tem a sensação de movimento no apartamento vizinho, o da mensagem. Aproxima-se rápido e debruça-se um pouco no parapeito, dando-se conta decepcionada de que nada mais era do que seu próprio reflexo no alheio vidro espesso. Nesse movimento, entretanto, verifica que outras janelas não estão vazias. O terceiro apartamento do seu andar, mais à direita, segue em silêncio, mas nos três acima identifica, à mão ou impressa, em preto ou azul ou vermelho, sob fonte ou caligrafia diversas, outras frases. Leu-as de cima para baixo.
Lembro o beijo e o abraço como uma vã ficção
Uma passagem imaginada de um filme
As letras fantásticas de uma narrativa
Sua iniciativa seria o catalisador de tais reações? Ou as sentenças, que afinal pareciam se completar, teriam sido por coincidência postadas antes, sem que ela as houvesse distinguido? Essas janelas encontram-se também fechadas, o que ela estranha mas logo entende: aquela posição, afinal, facilita a exposição dos cartazes. Recua, ainda assim, um pouco receosa. E dorme sem jantar.
Somente no dia seguinte observa na parede de sua sala o famoso quadro de Escher que substituiu o do artista abstrato russo na decoração domiciliar, enquanto na foto em preto e branco com os pais verifica uma falha na projeção a impedir que se visualize a metade superior da imagem, restando apenas ela, muito criança, com um vestido de festa, de pé, as pernas dos adultos de um lado e de outro como se a protegessem. Os pais desaparecem na imagem como desapareceram de sua vida — ou ela que o fez? Há tolices que, quando ditas, materializam consequências muito persistentes. Não há, contudo, tempo para corrigir o problema técnico porque percebe que o primeiro vizinho a lhe responder no fosso do edifício modificou a frase exibida.
Há paúra e horror nas palavras sob os dedos.
Nos seus dedos? Nos do vizinho? De ambos? Dos outros? De todos? Responde contrapondo.
‘Sperança e medo digladiam-se no espaço.
Urge terminar a revisão. Impulsiona-a sua costumaz responsabilidade com prazos e não carências financeiras, as quais ela nem sabe se sofre, visto que recebe os valores, por tarefa terminada, na sua conta bancária, de onde são automaticamente debitados todos os seus impostos, tarifas e custos, de modo que não tem ciência de quanto lhe resta em caixa ou do eventual valor que pode estar a dever à instituição financeira.
Mas de novo seu rendimento no trabalho é baixo. No meio da tarde, esse seu novo e inesperado interesse faz com que procure por novas mensagens; encontra as mesmas, mas intui que poderiam existir outras acima ou abaixo do próprio apartamento, com dificuldades de visualização do seu ponto de vista. Debruça-se, mais do que antes, mas conclui não ser possível fazê-lo sem risco de cair no fosso do prédio, o que a faz repensar a estratégia. Tudo o que consegue perceber, casualmente, é que, à falta de manutenção, o espelho do saguão da garagem teve uma haste rompida e, assim, voltou-se para o alto. Dá-se conta do perigo da queda justamente ao ver seu irrefletido movimento refletido na superfície convexa. Cogita que carece de tática mais previdente e dirige-se ao cômodo contíguo; do basculante do depósito, num ângulo sessenta graus distinto, haverá de identificar outros cartazes, se houver. De fato os descobre, mas provoca em sua cabeça muita confusão com todos eles, porque dali a sensação é a de que as frases encontravam-se baralhadas, em locais permutados, como se estivesse a ver então outro espaço hexagonal, alternativo ao original. Por exemplo, no lugar que identifica logo à direita, que devia ser a sua janela, ela lê
Árvore insulada, que nunca frutifica,
e, no andar abaixo, o complemento
Ocupa espaço mas não nos sustenta o corpo.
As anotações afetam-na mais do que sua inexplicável distribuição. Lembram-na do ex-marido, que ela abandonou. Volta à cozinha para conferir a disposição original (a real?), mas não se empenha nisso. Apenas escreve novo papel e expõe à janela.
Concentricidade excentricidade instâncias...
Com o passar dos dias, procede a revisão que lhe foi encomendada com frequência cada vez menor, até abandoná-la totalmente e o assistente digital, concluindo sozinho que a falta de continuidade representa o encerramento da tarefa, envia à editora um e-mail escrito automaticamente que estava na caixa de rascunhos, dando aval à tradução. Ao constatar isso, ela escreve outro na sequência, em que não se corrige e, pelo contrário, solicita férias, a fim de se dedicar inteira ao colóquio em que se lançara.
Anota todas as inscrições. Tenta estabelecer uma ordem que lhes dê sentido. Exceto por esporádicas vitórias, falha quase sempre, sobretudo quando as observa pelo basculante, que fornece sempre uma nova organização das mensagens. Por vezes, ordena trechos que surgem e desaparecem separadamente mas que fazem mais sentido quando unidos.
Vivemos sob a espada invisível da morte
C’um exame que nos mede a perenidade
Cujo cálculo não podemos conferir
Às mãos, um diagnóstico sempre lacrado
Um bafo de expectativa então a atinge, como se estivesse perto de desvendar os mistérios, ao perceber indícios de que não se trataria o conjunto de uma obra de autoria de vários vizinhos, mas de um obscuro gênio anônimo. Teria ele acesso a todos os imóveis? Mas, se suas próprias mensagens por vezes pareciam suplemento indispensável a outras, teria ele acesso também ao seu apartamento? Antes: teria acesso a si mesma?
Na sala, onde trata as informações, a configuração 1 é agora permanente — dado o afastamento do trabalho, ela não vai mais ao escritório — no que contudo não repara, deixando a casa a cargo do assistente digital, que se responsabiliza pelo acionamento da autolimpeza local e mesmo pelas compras que lhe aparecem na porta (e que ali se acumulam, porque já pouco se alimenta). Ela não verifica nem mesmo que o programa modificou a obra de arte na parede por um quadro diferente de Escher, igualmente afamado. Somente quando a fotografia com os pais desaparece por completo e surge subitamente a do ex-marido é que ela desconfia que a memória do aparelho não parece mais compreender seus desejos. Encara alguns segundos nos olhos o homem que sorri na imagem, recordando que ela havia pedido o divórcio porque, desde o rompimento com os pais, necessitava construir uma família, o que ele não poderia proporcionar. Seu estado atual mostra que a decisão foi equivocada, trocando pouco por nada. Ordena que o assistente digital substitua a foto imediatamente, no entanto, talvez por não conseguir, tomada pela peculiar emoção, articular as palavras com clareza, não é atendida. Arremessa então o aparelho contra a parede, destruindo-o exatamente sobre a foto que se apaga. Sente então, nesse desaparecimento, como se, dessa vez, o marido é que a abandonasse, e compreende assim a dor que pode ter causado em sua repentina decisão passada. É a primeira vez que dói nela (ou que ela descobre que lhe faz afinal sofrer) a falta que promove a ausência daquele homem que acabou sendo o único a um dia suportar as suas idiossincrasias.
Volta a se dedicar à tarefa que já lhe ocupa há semanas. Por vezes, surge-lhe afinal uma frase que parece genesíaca, adequada ao início de tudo.
Pelas janelas, a dialética do caos
ou
Nada mais se multiplica exceto palavras
Vibra como uma criança que encontrou a figurinha primeira do seu álbum ou a própria Eva testemunhando a nomeação do mundo; mas logo põe em dúvida a conclusão e estima que talvez o fragmento em voga mais bem figure no apocalíptico encerramento de tudo, se houver.
Um dia, a junção de um dístico (há muito que não restam dúvidas se tratar de versos) leva a uma espécie de epifania.
Não lembro que cidade se encontra lá fora:
Madrid, Paris, Berlim, Rio de Janeiro, o mundo.
Com efeito, ela não recorda onde vive. Tem como primeira reação solicitar que o extinto assistente digital lhe abra a persiana da sala, mas a imobilidade de tudo é única resposta possível. Atabalhoada, descerra manualmente as placas corrediças horizontais em que não está habituada a mexer e afinal estabelece contato visual com o espaço externo. Não pode mais divisar os prédios no lado oposto da Avenida, que parece ter sido ampliada em muitas pistas, até o horizonte — seria efeito do vazio, já que nem um único automóvel segue pela via, então tomada pelas folhas secas outonais, ou seu problema de visão a leva a ver imagens se desdobrarem? No fosso do edifício, o fenômeno também acontecia há alguns dias, porque, acima ou abaixo do seu apartamento, os andares gradativamente se avolumaram e seu início ou fim agora, aos seus olhos, perdem-se no infinito.
Senta-se atordoada em uma poltrona, na qual afunda. Mas eis que a falta de percepção física desses pontos extremos condiciona seu raciocínio e leva ao pensamento de que também o grande poema que tenta organizar não tenha princípio ou término. Sugere-se primeiro a circularidade das mensagens, até concluir por uma segunda teoria, mais elaborada, a da simultaneidade — tudo é presente, como lera recentemente: “o futuro não tem realidade senão como esperança presente, o passado não tem realidade senão como lembrança presente, apenas no presente ocorrem os fatos”. Os versos devem ser declamados ao mesmo tempo — essa é a resposta!
Levanta-se num salto. Escreve então dois papéis, as mãos a tremer, e expõe ambos à janela simultaneamente:
Busco n’Outro Eu-Mesma p’ra não enlouquecer.
Busco Eu-Mesma n’Outro p’ra não enlouquecer.
E então todas as janelas iluminam-se juntas. Logo são abertas. Em cada uma delas, até onde se pode com a vista alcançar, ela vê surgir alguém. E apresentam todos — são todos — a mesma imagem de si própria.
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