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Foto do escritorContos Conjugados

Defenestrar, 1

“Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

[...]

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.”

(“A estrela”,

Manuel Bandeira)


Quando, naquele fim de tarde, trajando apenas lingerie, ela aproximou-se por um segundo para fechar a janela do seu quarto, deparou-se com o vizinho do bloco da frente. No susto, a mulher trouxe para si de imediato os dois lados de cortinas para se esconder, mantendo exposto apenas o rosto sobre o colo que emergia do V formado pelos panos. Ele ficou com o corpo paralisado na janela de sua sala de estar, sem saber o que fazer, as mãos entorpecidas cravadas no parapeito de mármore, reagindo somente com uma expressão envergonhada, que ela então achou simpática porque revelava a inocência do homem no incidente. Já protegida, julgou o vizinho até interessante. Ele, percebendo que o susto inicial dissipara, relaxou e riu discretamente da situação. Ela então avaliou que se tratava mesmo de um homem bonito e também sorriu, baixando levemente os olhos e levando uma das mãos ao rosto, ocultando parte da boca e sugerindo acanhamento, mas deixando assim que uma das cortinas lhe escapasse brevemente e expusesse outra vez seu lado esquerdo. Puxou-a logo de volta, como quem se desse conta da imprudência. Ele, modificando o tom do sorriso, assumiu uma fisionomia algo provocante. A mulher fez menção de deixar novamente as cortinas caírem, expondo um pouco mais o colo e parte do sutiã azul celeste, mas rápido se escondeu outra vez, agora com um olhar francamente convidativo. Foi quando ele constatou ser a hora de agir e observou avidamente ao redor para contar os andares, espelhou mentalmente o seu prédio e o bloco da vizinha, calculou qual seria o número do apartamento da moça e, imediatamente, apressou-se: pegou o interfone ao lado da janela e fez-lhe a chamada.

Ela atendeu. Era Graça 402B; ele, James 406A. E assim iniciaram seu relacionamento. Ficavam horas às suas respectivas janelas, conversando ao interfone. Como o apartamento da mulher ficava na coluna central do seu bloco, todas as suas duas faces (um quarto e uma sala) davam na mesma direção, ao contrário do caso dele, porque vivia em um imóvel de maior metragem e seu quarto, voltado ao noroeste, não podia ser visto por Graça. Do interfone desse outro cômodo, descrevia então, todo início de noite, o brilho da Estrela D’Alva, que ele de lá costumava observar. Ela não tinha a possibilidade de divisar a imagem, nem mesmo se debruçando em suas janelas, literalmente bloqueadas pelos C e D, enquanto o ângulo de visão do homem dava-se exatamente entre esses dois prédios. Mas Graça imaginava Vênus certamente com mais beleza do que seria a sua figura real, potencializada pelas palavras do enamorado. Nos dias românticos, ele delineava-a como uma virgem e pura madrepérola a reinar no céu angélico; nos mais insinuantes, como quente e vulcânica meretriz errante a pecar até as últimas baixezas na ardente Via-Láctea. James lembrava da referência mitológica que batizava o astro celeste e dizia que Graça ofuscava o seu brilho — não importava a que se referisse, valia tanto para o planeta quanto para a deusa romana. A mulher então se iluminava de satisfação. Arrumava-se cada vez com mais esmero para diariamente, no fim da tarde, encontrá-lo pelas ventanas. E já na privacidade das madrugadas altas, findava muitas vezes deitada em sua cama, para que ele tivesse o alumbramento de vê-la nua... toda nua!... sua nudez feita alma.

Com o tempo, os demais vizinhos já os conheciam como o mais adorável casal do condomínio, um encanto digno de capas de antigas revistas femininas ou de romances oitocentistas. A velhinha e o esposo do 505A, por exemplo, celebravam francamente a esperada união, transferindo àquelas doces crianças (segundo apenas sua relativa concepção — James e Graça afinal não eram assim tão moços) seu próprio encontro de quatro ou cinco décadas antes. Mesmo aqueles cujas fenestras não permitiam que se testemunhasse pessoalmente os pombinhos tinham ciência da relação por muito ouvirem falar. Contava-se pelos quatro blocos, através dos fios interfônicos, que ambos tinham gostos musicais e cinéfilos parecidos, posições políticas bem semelhantes, concepções sobre relacionamentos no mínimo francamente adaptáveis um ao outro, além da obviedade de se amarem: de modo que o casamento parecia iminente.

A diferença manifesta que restava entre os dois — nada impeditiva, como se queria crer, no máximo episódica — é que Graça morava sozinha e tinha dois empregos sólidos e bons pagadores enquanto James dependia de espaçados serviços freelancer de revisor e da aposentadoria da mãe, uma mulher já muito idosa que morava com ele e que não saía do segundo quarto do apartamento. Com expressão que retirara de um antigo livro que o pai deixara sobre a mesa de centro da sala antes de morrer há muito tempo e no qual James, temendo desmarcar a página em que havia deixado de ser lido, nunca mexeu, o namorado dizia que sua mãe parecia alheia ao mundo que não lhe estivesse à roda do quarto. Assim garantia ele a vacuidade da genitora, mas parece que os termos de Xavier de Maistre nunca significaram mesmo o que literalmente sugeria e a verdade é que a velha, com frequência, acompanhava as conversas do casal observando tudo pelas frestas da persiana do seu aposento, que igualmente ficava de frente para o apartamento de Graça. Não lhe trazia agrado pensar naquela mulher com o seu filho, sobretudo pela despudorada forma como se conheceram e pelas safadezas noturnas que ela intuía sem arriscar espiar — mas preferia, naquela altura, guardar para si a antipática reprovação.

Indiferentes a tanta plateia, efetiva assembleia de condomínio que os acompanhava e registrava em ata a relação, o casal seguiu namoro e noivado, sempre cosidos pelas descrições de James sobre o astro celeste. O planeta inalcançável por uma distância de extensão desumana, comparativamente, tornava Graça menos impalpável, mais próxima, tocável. Por isso, mesmo quando chegou época do ano em que vênus lhe sumiu das vistas, migrando para o outro lado do céu em oposto horário, ele passou a improvisar de memória e, nessas ocasiões, suas palavras arrebatavam a mulher de modo ainda mais vívido, desfalecendo-a.

Atendendo à expectativa geral, a história vingou e o casamento aconteceu em poucos meses. Todos aos interfones ligados em modo conferencial, o juiz de paz que morava no 604D celebrou o enlace e os declarou marido e mulher, apadrinhados pelo septuagenário casal do 505A. Da cobertura do Bloco B, onde um cirurgião vivia nos píncaros da solidão mas (ou por isso) se comovia com a felicidade amorosa de outrem, fogos de artifício presentearam os nubentes. E chuvas de arroz brotaram de quase todas as janelas, exceto da que, aberta como nunca, exibia a mãe do noivo, altiva e bem vestida de gala e chapéu em sua alcova mofada, sem sorriso no rosto severo e malcontente.

James investiu alto e a lua-de-mel custou dois aparelhos telefônicos novos e um plano de dados de indefinidos gigabytes que, segundo a operadora contratada, duraria para sempre...

Mas não durou. Viveu-se o paraíso por sete intensas semanas completas. Depois, o casamento começou a ameaçar sucumbir a uma rotina que, no decurso do namoro e mesmo do noivado, não incomodava. As exposições da Estrela D’Alva eram repetitivas e pareciam cada vez menos ter a benção venusiana. O dia em que James a descreveu como um denso planeta sulfuroso e isotérmico deixou em Graça a sensação de desejo insatisfeito. A mãe do homem, ademais, do seu quarto, queixava-se azeda da nora sempre que ouvia o filho conversar na sala de estar; fingia sussurrar, na confiança porém de que se fazia ouvir em pleno por ela, fosse pelo interfone, fosse pelo aparelho de celular, o que ameaçava potencializar uma pequena crise que os começava a cingir. Sempre que via oportunidade de criticar Graça, a velha, calada até a consumação do matrimônio, tagarelava com eloquência, de modo que as tentativas de defesa de James à esposa, no início assíduas, migraram gradativamente a um silêncio que guardava a expectativa de que a mãe se cansasse, até chegar a alguma atenção que por vezes o assaltava com certa concordância que admitia apenas a si.

Na necessidade de que a vida rumasse a novos objetivos para que o casamento tomasse sustento pela renovação, Graça não tardou a anunciar a efetivação de um plano do casal: sua primeira gravidez. Pendurou no puxador da janela um sapatinho de bebê para surpreender com a boa nova o marido, que chorou de felicidade ao chegar à sua sala pela manhã, entendendo de imediato o código. Foi ainda uma alegria compartilhada no mínimo pelos blocos A e B, uma audiência remanescente da história. Sete meses mais tarde, ela já trazia seu filho aos braços. Embriagada de júbilo com o nascimento mas ocupada pelos cuidados exaustivos com a criança, Graça não se ateve ao seu casamento nos meses seguintes. E a dádiva, no avesso das esperanças que ela alimentava, não provocou grandes variações nos rumos do relacionamento que fadava. Apesar do momento tradicionalmente feliz que viviam, a sogra insistia em criar no filho desconfianças diversas sobre sua mulher, que versavam desde assuntos financeiros até possibilidades adúlteras, sempre se certificando de que suas acusações não circulavam, afinal, somente à roda do seu quarto, migrando à esposa por algum meio.

Graça lamentava o pai ausente que James fora se tornando, passando mais tempo à ventana do seu quarto do que na da sala, apartado da família. De lá, muitas vezes, nos meses de tempo fechado que dominava então o clima, ele não podia mesmo observar o céu encoberto por uma nuvem de amargura e descia atenção dos prédios que subiam no ar puro lavado pela chuva aos que desciam refletidos na poça de lama do pátio. Não obstante a distância entre o casal, que não pareceu regenerar nem mesmo com a volta dos dias abertos, uma menina nasceu quando a criança mais velha gozava de um ano e meio de vida, dessa feita já sem grande atenção dos condôminos, desinteressados da narrativa, condicionados por filmes açucarados e novelas televisivas a acompanhar tais trajetórias não muito além do momento do enlace matrimonial.

Eis que, apenas após algumas semanas do nascimento da caçula, a mulher passou a desconfiar de que o afastamento do marido para o seu quarto não se traduzia somente em uma fuga do convívio com a sua família provocada pelas importunações da mãe manipuladora, mas encontrava causa numa jovem que morava com o pai no 201C, ironicamente chamada Dalva. A menina, pouco mais que uma adolescente, encerrara um namoro com o garoto do 106A de modo intempestivo, supostamente seduzida pelo marombeiro do 101A, como chegou a ser ventilado. Mas a presença constante de James na janela do seu quarto, com presumível bom ângulo de visão sobre o cômodo em que dormia a garota, levou logo a crer que fosse outra a razão. Foi o que a fofoqueira do 101D insinuou ao interfonar para Graça. Ela resistiu a essa versão, até que emergiu a história da gravidez de Dalva, que culminou no infarto do seu pai — episódio que, se não foi fatal, deixou sequelas na vítima. Em sua última conversa com James, Graça disse que o casamento entre eles poderia mesmo sobreviver a todas as dificuldades, menos à infidelidade conjugal, sinal de que já seria tarde em demasia para correções; ele alegou inocência, mas ela não respondeu mais nada e desligou, em definitivo.

A notícia correu o condomínio, a reavivar personagens antigos na memória de todos, causando revolta contra James, apontado pela própria jovem como responsável por sua gravidez, numa confissão convulsa ao delegado do 101A, tio do marombeiro. De todas as reações, a mais pungente era a da, já nessa altura, viúva do 505A, decepcionada com o afilhado, mas consolada pelo fato de o falecido não ter vivido para compartilhar o desengano. E assim James foi condenado por uma assembleia a dois anos e meio sem poder se aproximar das janelas do seu próprio apartamento. Potencializando a pena, ele mesmo optou por se restringir ao seu quarto, longe da pequenez e da perfídia da sociedade, aproveitando o tempo para finalmente ler o livro que o pai não terminara, o que o ajudou a compreender o processo de demolição do seu palácio encantado de ilusão, imóvel em seu imóvel.

Nem mesmo seu apartamento, contudo, era ainda tão seu. O divórcio de James e Graça, assim como o processo de Dalva contra ele, foi rapidamente encaminhado pela advogada do 604A e julgado pelo eclético juiz do 304D. O homem foi instado a pagar à jovem do 201C uma indenização por perdas morais e custear o tratamento do pai, além de fornecer pensão ao filho da menina, embora testes de paternidade conduzidos pelo delegado tenham tido resultados no mínimo inconclusivos. Para a ex-esposa, James perdeu a posse de metade do seu imóvel na partilha de bens, fato criticado duramente pela mãe, que lembrou a cada dez minutos por todo o resto da vida que o bem era herança do pai do rapaz, cujo sacrifício de décadas fora assim em vão. A ele, no entanto, não importava mais o apartamento; antes, preferiria resgatar Graça, mas a mulher dos primeiros tempos, agora impossível. E, sem recorrer a instância alguma, passou esse homem sem orgulho a pagar à ex-esposa o valor referente ainda a meio aluguel de sua moradia, além, evidente está, da pensão às duas crianças.

Nunca desconfiou de que a menina mais nova pudesse ser filha do cirurgião da cobertura do Bloco B. Graça, em uma das melancólicas madrugadas que passava à janela olhando o apartamento apagado de James, encontrou o outro vizinho ao passar casualmente os olhos pelo reflexo que apenas a lua cheia produzia no vidro da janela fechada do 604A entre 4h e 5h da manhã de dias que prometiam ser bem ensolarados. Somente sob tais circunstâncias cósmicas podia o casal amante efetivar o encontro de suas solidões, sob cautelas de se despedirem antes da vigilante Estrela D’Alva surgir no horizonte, não pelo risco de denúncia, mas pela inscrição que destacava de suas culpas. Mas, da morada do cirurgião, observavam-se todas as estrelas, que eles faziam tremer no ar frio; assim, com ele, Graça não se ateve a um astro, Graça viu os céus! E foi feliz...

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