Contaminar
- Contos Conjugados
- 15 de jun.
- 9 min de leitura
“Père adoptif de ceux qu’en sa noire colère
Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,
O Satan, prends petié de ma longue misère!”
(“Les litanies de Satan”, Charles Baudelaire)
Recebeu o primeiro diagnóstico positivo para a doença na ocasião em que os postos de trabalho reabriram. Ela era ainda muito jovem e iniciara naquele emprego como trainee pouco antes do início da pandemia. Foi com espanto que descobriu estar contaminada pelo vírus, já que não sentia nenhuma indisposição. Voltou assim para casa, seguindo por duas semanas recomendações de isolamento social. A mãe, de longe e com fervor, repetiu novenas pela recuperação da filha e ela também não deixou de rezar, pedindo por sua saúde acima de qualquer coisa.
Soube que colegas de trabalho também receberam esse resultado, alguns de imediato e outros dias depois de já terem assumido suas atividades laborais, dentre eles, aqueles com quem estivera no dia do retorno. Houve internados por sintomas leves ou gravidade maior, houve mesmo mortos, mas houve também quem, como ela, não desenvolveu sintomas. Após quase vinte dias, regressaram esses sobreviventes que não passaram por nenhuma severidade, para fazer novos exames e afinal voltarem a ocupar seus postos; ela, contudo, ao contrário dos demais, com surpresa se viu positivada outra vez.
Retornou para casa assustada, mas confiante na proteção divina que não a desamparara até então. Alguns dias depois de estar na empresa, teve notícias de que se identificou novo surto no lugar, com mais uma ou duas mortes, incluindo a enfermeira do trabalho que a examinou. Na ocasião, foi submetida a outra modalidade de teste, mais cara e demorada, que acabou por confirmar a prova de antes. Não sabia se acreditava nessas análises, suspeitou do prestígio do desconhecido laboratório contratado pela empresa, mas, com o corte total do pagamento, que já estava diminuído pela metade desde o início da peste, não gozava de recursos que lhe permitissem buscar alternativa mais confiável. A situação financeira aguda, aliás, dava-lhe apenas mais um mês de aluguel pelo depósito feito na contratação, o que, findo o prazo, obrigaria que retornasse à sua pequena cidade natal, à casa dos pais. Ela hesitava quanto a essa solução, temendo contaminar o velho pai e a velha mãe, mas a escolha era cada vez mais inevitável. Quando pouco mais de um mês depois o sangue, que lhe foi sorvido dessa vez em seu endereço, acusou ainda a presença ativa do vírus, uma vez despejada do lar, provisório como sempre são os lares alugados, se não são sempre provisórios todos os lares que se ocupam na vida, a própria vida inclusa, reitere-se, quando faltaram recursos para manter a locação, não conseguiu alcançar opção e assumiu o risco de voltar à casa da infância.
Tinha fé, porém, de que essas análises estivessem equivocadas e que tudo terminaria bem ou que, sendo ela assintomática, por uma questão genética, os pais tenderiam a ser da mesma substância fisiológica sua. Além disso, Deus proveria. Enganou-se em quase tudo. O motorista que fez seu transporte até a cidadezinha ficou doente, internado por longo período, enquanto o pai e a mãe não sobreviveram ao seu convívio por nem mesmo três semanas. Estando agora em um ambiente rural, cidadela onde todos se conheciam, longe portanto do anonimato da urbe em que morara nos últimos anos, não tardou para que se comentasse de modo amplo o fato e a secretaria municipal de saúde passasse a fazer nela exames semanais, para tão logo aliviar as tensões da população. Todos os tampões, porém, marcavam insistente positividade. Em contrapartida, ela se sentia cada vez mais bem disposta, nem de inanição sofria, consequência imaginada desde que, para não sair nunca às ruas, se alimentava exclusivamente do que colhia da pequena horta do quintal de casa que havia sido organizada pela mãe. A matéria era pouco variada mas seus dotes culinários tornavam-na pratos de inesperado deleite ao seu paladar.
Das enfermeiras que se revezavam na coleta do material para exames na varanda de sua casa, duas adoeceram e uma faleceu, apesar das roupas absolutamente vedadas que usavam, projetadas talvez para desastres nucleares, e do processo de descontaminação por que passavam antes de retirarem o traje. Acusada de trazer a peste para a cidade, que em poucos meses perdia cinco por cento de sua população, ela recebeu certa noite um telefonema da amiga do tempo de catequese, que dizia, porque não podia se desviar dessa obrigação moral e afetiva em razão de todas as boas lembranças que guardava da infância, estarem lhe organizando um atentado. Ela então pegou os bens que podia carregar, fez uma oração breve diante do pequeno altar que a mãe havia mantido na varanda e, no início da madrugada, tomou o velho carro do pai, rezando muito para que funcionasse e tivesse combustível suficiente, assim escapulindo antes que homens munidos de tochas chegassem e incendiassem a casa em que crescera e que estava na família havia cinco gerações.
De volta à cidade grande, mas impossibilitada de encontrar emprego na área de formação, porque toda firma de tecnologia conhecia a sina da sua falida concorrente cuja desgraça, regia a lenda urbana, era atribuída à estagiária assintomática, conseguiu uma ocupação de cozinheira em um restaurante. Não demorou para que o local se tornasse significativo foco da doença e quedasse interditado pela vigilância sanitária, cujas investigações, por cruzamentos e interseções, acabaram chegando ao seu nome, após o mesmo ocorrer em outros dois estabelecimentos em que ela também passara a trabalhar. Foi então examinada pelos mais conceituados laboratórios da região, que lhe identificaram a insistente positividade virótica não obstante seu estado de saúde perfeito. Liberada na ocasião, estava sob a condição de que não voltasse a trabalhar junto ao público, ainda menos na produção de alimentos, e que enfim se isolasse por completo. Mas precisava de sustento, ao que não foi oferecida compensação do Estado, não demorando a novamente se posicionar em algum mercado laboral, dessa vez em casa de famílias abastadas, que não raro comentavam que seu tempero divino deveria ser apreciado de joelhos. Nesse ponto, a situação tornou-se mais tensa, porque se viu responsabilizada criminalmente pela morte de vários cidadãos da mais alta classe burguesa da nata social da capital do país, uma exterminadora da nobreza daquela ancestral cidade.
Foi inicialmente internada em hospital psiquiátrico, não pelo diagnóstico de problemas mentais, mas por ser o único lugar em que se pudesse realmente manter isolada a mulher contaminada, nas estruturas arquitetadas para esse preciso fim. A equipe clínica, nessa altura, já não se aproximava dela, mas funcionárias da área de limpeza foram pouco a pouco fazendo amizade pelo vidro do visor da porta e, num dado momento, vendo-a tão bem e não crendo em sua doença, estabeleceram contato mais próximo, o que logo ocasionou um grande surto no lugar que não apenas as matou como vitimou ainda pacientes, enfermeiros e, no limite do imperdoável, médicos. A solução encontrada foi enclausurar a portadora da peste numa ilha abandonada onde funcionara décadas antes um antigo farol, alimentando-a com enlatados que lhe caíam de paraquedas a partir de helicópteros, enquanto uma larga discussão que envolvia vários setores da sociedade deliberava se não seria o caso de lhe imputar uma pena capital, executando cambalhotas argumentativas que lhes permitissem aplicá-la sem perder o tradicional estatuto de civilidade religiosa que marcava aquela nação.
Nesse tempo, num experimento que se disfarçava em caridade, deram-lhe a companhia de um cão, que tinha a função do pássaro engaiolado nas minas de carvão. O animal, segundo esperado, adoeceu algumas vezes, não resistindo à terceira investida do vírus. A perda de mais essa amizade, quiçá a única que verdadeiramente nunca a temeu, fez a mulher tomar a decisão de fugir da ilha em que estava confinada, a nado. Era mais provável que morresse tentando atravessar o largo espaço aquático que a separava do continente, mas ela mesma já considerava que a pena capital era uma hipótese justa e saltou de madrugada nas águas salgadas congelantes do oceano, deixando a cargo de Deus a aplicação ou não do castigo definitivo. Tinha em verdade, porém, mais saúde do que supunha porque, apenas após algumas horas de ininterruptas braçadas, estava de volta à terra firme. Havia uma estrada, deserta naquele horário, que levava a algum lugar desconhecido e ela a seguiu a pé. Não se permitiu, porém, alcançar destino, passando a viver às suas margens, evitando contatos, comendo raízes, hidratando-se quando chovia, sem convivência humana de nenhum grau.
Reapareceu muitos anos depois, com feições modificadas pela forma de vida dos últimos tempos, menos crente não nas interferências divinais mas na positividade de suas proteções e apresentando-se sob um novo nome: Fausta. Estava então convicta (menos que isso, no máximo esperançosa) de que, como todos os surtos conhecidos da doença haviam desaparecido naturalmente apesar dos fracassos da ciência em encontrar soluções medicamentosas ou profiláticas com absoluta eficiência, ela também por certo já não a desenvolvia ou transmitia. Encontrou novamente ocupação no mercado alimentício, atuando em bares e pensões, espaços identificados rapidamente como origem do ressurgimento da peste. Assim é que pôde fazer e perder amigos mais uma vez. Reconhecida afinal pelas novas diligências sanitárias, precisou empreender a repetida evasão.
Andava clandestinamente pela cidade, enquanto seu retrato falado se espalhava de mão em mão e a cercava. Acuada no cais, prestes a ser capturada pela perseguição invisível que apenas intuía, conseguiu esconder-se no porão de um navio mercante estrangeiro que partia para outros continentes, alcançando o sucesso de permanecer oculta por vários e alimentando-se das cargas que furtava em quantidades imperceptíveis, tendo por companhia apenas os ratos (cuja população embarcada, aliás, diminuía como nunca), sem contato com nenhum tripulante. No momento em que, ainda assim, ouviu que alguns dos marinheiros começavam a apresentar sintomas da doença, lançou-se ao mar pouco antes que atracasse no porto que se avizinhava, nadando até a praia deserta mais próxima.
Estava agora em país distinto de continente distante, em que não era reconhecida. Fez-se de muda para não entregar sua origem pátria, lugar associado à doença por conta do novo surto de cerca de um ou dois anos antes. Encontrou as mesmas ocupações anteriores, porque a cozinha ainda lhe era um atributo irresistível e, por isso, potencialmente empregador. Embora mais envelhecida e após tanto tempo sem prática, não perdera a mão para um bom tempero, mesmo que involuntariamente o envenenasse. O surto da doença que não se manifestava no país há tantos anos foi atribuído ao navio pestífero que atracara há pouco tempo, malgrado o fato de a nenhum tripulante ter sido permitido desembarque, mesmo os mais graves que careciam de internação imediata — o falecimento do arrais, destaca-se, gerou importante indisposição diplomática entre as nações envolvidas. O fato de a peste ressurgir nos demais portos por que passara comprovaram a culpa da embarcação, na qual, evidente está, não se registrava traço de sua presença.
Era esse novo destino um país maior e muito mais populoso e ela encontrou ali oportunidades de se deslocar com mais facilidade e se ocultar com maior sucesso por longos anos, sem que ninguém lhe atribuísse a desgraça de aquela federação tornar-se um novo e permanente epicentro da doença, sob mutação mais contagiosa e mortal do vírus do que as observadas nas ondas infecciosas anteriores de qualquer lugar do planeta. À medida que migrava e estabelecia-se em uma comarca e cultivava amizades e as perdia para os braços da morte, afinal se convencia de que tinha alguma responsabilidade, de que fora amaldiçoada por Deus com a saúde pela qual um dia rogou e dotada de uma peçonha que a humildade dos olhos e a mudez por que optara não permitiam às vítimas cautela ou defesa. Nem assim, entretanto, tomava iniciativas de se afastar da humanidade por tempo longo, na expectativa de que um dia o mal findasse tão inesperado quanto se instalara. Consumiam-lhe as culpas, é verdade, com intensidades que doíam em partes do corpo que ela não conseguia precisar de tão profundas, mas lhe apavorava a alternativa da solidão, de que já tanto padecera.
Tão somente quando, por fim, as autoridades sanitárias locais lhe alcançaram a exata identidade é que teve ímpetos de fugir e adentrar a floresta densa que existia no limite da cidade em que na ocasião vivia. Tornou a vagar como eremita, alimentando-se de animais, os quais não matava com suas mãos mas que por vezes também sucumbiam aos microrganismos por ela espalhados na mata. Voltou a plantar, lembrando da pequena horta da mãe, usando sementes que roubava dos lixos lançados nas margens do espaço urbano, fazendo da terra seu sustento e sua aliada. E assim esperou por muitos anos até que pudesse ter uma oportunidade de regresso. Nesse tempo, não cultivava em si expectativas de que a esquecessem, já que seu rosto, segundo apurou certa vez numa noturna escapada sorrateira pela cidade, era mundialmente conhecido. Descobriu pelos jornais velhos, que embrulharam pescados e foram esquecidos em calçadas após a xepa de uma feira, que seu nome, o falso e último que usara, padecia de apelidos inglórios (alguns misóginos), que seus conterrâneos eram vítimas de xenofobia por associação a ela e que, mais ameaçador do que tudo, várias vertentes religiosas fundamentalistas a consideravam uma bruxa leprosa enviada de Lúcifer e queriam do seu exorcismo ao seu sacrifício para aplacar a fúria de Deus contra os homens.
Um dia, incontáveis sóis e luas após o definitivo exílio (não tinha mais parâmetros para contar o tempo segundo as racionalizações da humanidade), sentou-se na porta da úmida caverna que habitava, a meio caminho entre a luz e a sombra. Os raios do fim da tarde eram fortes naquele verão, ela entretanto sentia frio. Estava tomada por uma tontura, uma fraqueza, uma pressão que lhe magoava o peito. Passou a mão na testa úmida e não lhe restaram dúvidas: tinha febre, provavelmente alta. Então, olhou para o céu, depois para a terra, e, pela primeira vez em tantas décadas, sorriu.

(Sob o título "Fausta", a primeira versão desse conto foi publicada originalmente na coletânea Pandemias: poemas, contos, microcontos, organizada por Aldenor Pimentel em 2022 a partir do II Concurso “Literatura de Circunstâncias” e editado pela Editora da Universidade Federal de Roraima.)
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