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Corporativar




Por funcionar ao lado de uma Creche e Escola Infantil chamada Reizinho Azul aberta até às 19 horas, o empreendimento comercial, uma média empresa de cerca de 60 funcionários do ramo hoteleiro/barista e de serviços pessoais, era conhecido de forma difundida pelo público local como Fadinha Vermelha, em função da luz acima da porta de entrada, uma lâmpada de pouca potência sob uma cúpula de vidro antiga e suja que era usada para indicar que o espaço noturno estava em atividade, o que se dava sempre logo após o serviço vizinho encerrar as portas.

Nos últimos dois meses, todo dia ele era o primeiro cliente e aguardava com paciência as últimas criancinhas da Reizinho Azul afastarem-se antes que se acendesse a sinalização que indicava o início do expediente e liberava a entrada. Então, dirigia-se sempre ao balcão do bar sem se importar com outros atrativos e escolhia o mesmo banquinho redondo com o estofado creme, cujo tempo de uso expunha o enchimento de bloco de espuma. Bebia a noite inteira e, quase pela manhã, ia embora, sempre à mesma hora. Vestia em geral roupas sociais um pouco envelhecidas, com a gravata, já desfeita àquela hora, bastante puída no lugar habitual do nó.

É possível que viesse à Whiskeria de las Señoritas, razão social da empresa, diretamente do emprego, a julgar pelos trajes e pela hora em que chegava. Ali permanecia de segunda à sexta até quase de manhã, sozinho e calado, apenas consumindo as bebidas no bar. Nas madrugadas de sábado costumava sair mais cedo e nunca aparecia aos domingos, talvez por ser dia santo ou por se distrair com o futebol. Não era bonito embora também estivesse longe de ser feio, o que devia levá-lo a ser um homem raramente notado na multidão. Se esse era um traço que ele mesmo considerava vantajoso, só o seria possível afirmar uma vez conhecida a sua personalidade — jamais, contudo, souberam nada sobre o rapaz.

Não foi percebido em sua primeira visita. Somente na terceira ou quarta noite, Julianna reparou no potencial cliente, porque ainda era cedo e não havia outro freguês presente. Aproximou-se e exibiu parte de sua expertise: ofereceu-se com o olhar, dançou na sua frente com os seus famosos decotes, pôs uma das pernas sobre a dele. E o homem limitou-se a olhá-la educadamente, sem simpatia nem reprovação, para depois continuar a tomar o seu conhaque. Sem grande empenho nessa ocasião, a bela moça foi se preparar para receber outros clientes; workaholic, tinha estipulado para si um mínimo de oito por noite nos pacotes de serviço mais completos, ao menos de segunda à quinta, quando o movimento era menor.

Uma vez que Julianna, um dos mais cobiçados ativos da firma, não conseguira cativar o novo cliente, nenhuma outra julgou producente perder tempo com ele. Somente duas semanas depois, Paulinha, conhecida pela ofensiva alcunha de Broad Band, mulher alta com carnes muito redondas onde em geral interessava e também onde em geral não interessava aos clientes que assim o fossem — de todo modo, cabe destacar, muito requisitada no estabelecimento e com o maior índice de fidelização local e de manutenção do engajamento de leads — rebolou em sua direção balançando o volumoso e quase desnudo busto sob o tomara-que-caia ao olhar pouco interessado do estranho homem, que não demonstrou ser seduzido em momento algum.

É claro que a investida de Paulinha deixou Julianna apreensiva, dada a competição velada que havia entre as funcionárias, estimulada por Cani. O gerente geral, autointitulado Chefe Executivo de Operações, um uruguaio meritocrata que exigia inutilmente que o tratassem por Navaja, segundo ele seu real sobrenome, via nos conflitos controlados uma sempre eficiente forma de proteger a instituição de presumíveis organizações sindicais e associativas das garotas, no limite preciso de não comprometer o clima organizacional do Fadinha Vermelha. Havia por exemplo alcançado fazer sem grandes resistências o último turnover, que as meninas vulgarmente chamaram de passaralho, a isso porém restringindo o protesto.

Com efeito, seria um impiedoso trauma à imagem de Julianna ser preterida pelo cliente para logo depois ver Paulinha vender o serviço que ela não conseguiu que o homem consumisse. Por isso, temendo que a tragédia se concretizasse em nova investida e abalasse seu status profissional, no dia seguinte resolveu que daria cabo do assunto dedicando-se a ele full time. Fez longa sessão de vitrinismo: caprichou na maquiagem, passou no corpo a lavanda mais cara e usou a roupa que valorizava suas melhores curvas, vestido reservado a ocasiões em que sabia da visita de um key account, amigos da casa como jogadores de futebol, pequenos investidores ou vereadores e deputados estaduais com vários mandatos acumulados.

Não começou a tarefa se oferecendo de forma ostensiva. Conversou e dançou com outros homens, sem contudo concretizar nenhum negócio; optou em alguns momentos por trocar breves palavras com o garçom e parou ao lado do misterioso cliente sem olhar para ele; vez ou outra lhe tocava casual e ligeiramente o braço apoiado no balcão com um dos seios, escondido sob o tecido finíssimo; em certa oportunidade, posicionou-se entre ele e o ventilador de parede para que seus fios de cabelo mais leves fossem levados a lhe acariciar o rosto — tudo sem aparente sucesso. Noite avançada, ao som de uma agitada canção cuja letra instruía passos coreográficos, ela começou a bailar próximo a ele de um modo que era até displicente, ainda sem olhá-lo, esforçando-se no entanto para ser o mais sensual possível, mantendo escondido o que ainda lhe era mistério, mas expondo rapidamente parte da roupa íntima inferior em movimentos lascivos que a levavam ao agachamento breve. Diante da inutilidade dos métodos, mudou a abordagem para uma tática mais agressiva e com menor requinte, lançando mão de todo o restante do seu know how: sentou em seu colo cruzando as pernas grossas nuas, segurou o seu rosto com as mãos esfolando-as um pouco na aspereza da barba por fazer, teceu-lhe elogios, sentiu o cheiro peculiar do seu perfume, chamou-lhe amor, passou horas tentando encantá-lo... até desistir, espalhando à boca pequena, a fim de não colocar em xeque seu approach e não arranhar seu prestígio, que o talzinho devia ser viado.

Dali por diante, muitas tentaram ganhar o cliente, num sistema job rotation. Primeiro foi Ilza, jovem que mancava da perna esquerda e tinha uma cicatriz de facada que ia da mão direita até o cotovelo, o que a obrigava a usar pouquíssima roupa da cintura para baixo a fim de compensar a constância das mangas compridas do figurino. Depois foi Madalena, figura mignon e deprimida que, após ter trabalhado por curto período no exterior e frustrado seus planos de imigração à Europa, vivia lamentando a vida e já tentara três vezes o suicídio. Vieram em seguida a escandalosa Mixelle, que tinha dois filhos mas pouco os podia ver porque estavam à noite com a sua mãe e na Reizinho Azul durante o dia, e a Gêmea Vanessa, segundo se apresentava, cuja irmã ela dizia ter morrido há vários anos, muito embora, ao que parecia, fosse filha única e tudo não passasse de uma oblíqua estratégia de marketing. Até mesmo a tia Zazá, veterana cuja idade era um segredo industrial e que mais recentemente havia sido readaptada para a função de costureira, aventurou-se na empreitada, bem esperançosa de que o homem estivesse ali em busca de background, como se naquela profissão não aumentasse a procura pela mercadoria e o seu valor intrínseco justamente a concisão da carreira. E restou a Pâmela, a Travesti, comprovar que o problema do cliente misterioso não tinha relação com hipótese antes elaborada; talvez fosse impotência, segundo ela arriscou.

No decorrer de algumas semanas, Julianna acompanhou todos os investimentos sobre o inalcançável cliente e foi com grande desdém que reclamou à Mixelle que a Broad Band tinha voltado ao projeto três dias depois da desistência de Pâmela. Considerou que era hora de pensar gráficamente (expressão que Cani costumava usar nas palestras motivacionais à equipe, aparentemente sem saber ao certo o que significava) e resolveu então investigar aquele não-cliente. Certa tarde, oferecendo-lhe trocados, encomendou ao garçom uma coleta de dados para executar o seu business intelligence.

— Já tentei conversar com o homem, Julianna. Ele não gosta muito de papear e não descobri muita coisa. Resolvi não insistir para não correr o risco de espantar o camarada do único lugar que frequenta por aqui — e sussurrou — O Dr. Canivete ia ficar furioso.

— Esqueça o eunuco do Cani, — ela gritou, a quem quisesse ouvir — pouco me importam os centavos que ele ganha com birita! — Julianna tinha o tom arrogante das estrelas das antigas companhias mambembes, acreditava de verdade ter nascido para o glamoroso mundo artístico e que ali estava por um irônico desvio desenhado pelo acaso — Quero que você descubra qual o filme, o ritmo, o motel favorito dele, se é casado ou comprometido, se tem uma mãe doente, um emprego entediante, se é virgem, brocha ou qualquer coisa. Dê uns drinques por conta da casa para amolecer o cara, eu pago depois. Aproveite o meio da noite, ele deve soltar a língua quando estiver mais embriagado.

O garçom tentou com alguma dedicação, mas tudo o que conseguiu averiguar foi certo balanço de corpo quando, por acidente, alguém ligou o rádio numa estação pouco frequente e o ambiente foi invadido pela voz de Sinatra em “Stranger in the night”. Revelou isso a Julianna dando a entender que se tratava de uma descoberta comprovada por horas de conversa sobre o cantor, a quem o freguês teria todo o tempo se referido intimamente como Frank.

A moça então levou dois dias arquitetando seu plano de ação. Foi o deadline informal para as tentativas de Paulinha, que garantia estar aos poucos dobrando o cavaleiro, muito embora em nenhum momento ele tivesse mudado sua expressão abstraída nas conversas em que só ela falava, intermináveis conferências nas quais a moça discursava sobre seus mais íntimos segredos e que duravam a noite inteira. A dedicação impedia-a de bem performar como antes, levando-a mesmo a atraso de aluguel do seu quarto, porque abaixava muitas vezes a zero sua produtividade, a comprometer la eficiencia de la empresa y a alejar a Whiskeria de sus objetivos y metas de desempeño establecidos, segundo passou a reclamar Cani.

Naquela noite decisiva, logo que o cliente chegou, Julianna aproximou-se com dois drinques ao som de um CD de Sinatra. Paulinha, tomada pela surpresa, chamou-a de aquela piranha! a noite inteira, ainda que o uso do específico xingamento fosse passível de multa de acordo com o estatuto do lugar. Ela tentou puxar assuntos aleatórios sem sugestão sexual, depois passou a insinuar o tema. Cochichou expressões tais quais fazer amor e gemer mas não de dor. Não percebendo reações, tentou ser mais explícita, aumentando o tom para falar em penetrar, ter orgasmos, gozar... e foi diminuindo o nível do vocabulário na tentativa de excitá-lo, chegando a expressões como transar, trepar e outras menos publicáveis a audiências mais sensíveis. Finalmente, já quase vencida, como quem abdicasse de algo e lançasse mão de um recurso final de que ela preferia ter se preservado, chegou os lábios bem perto do seu ouvido e segredou algo, tocando-lhe o lóbulo da orelha com a língua quente e úmida. Ele levantou uma das sobrancelhas com discrição, menos pelo contato físico do que pela mensagem, mas não se moveu. Ela sussurrou-lhe mais duas ou três vezes, até que ele afinal a encarou por breves segundos e a pegou pela mão. Os dois subiram as escadas, sob o olhar de reconhecimento de Pâmela, franca admiradora de Julianna; sob a surpresa de Vanessa, cética em relação às chances de qualquer das meninas; sob o aplauso e as gargalhadas de Mixelle; sob a fúria de Paulinha, que não mais negava para si os sentimentos que nutria pelo estranho cliente que a ouvia como ninguém nunca ouviu.

O homem retornou menos de uma hora depois. Todos esperavam que ele partisse, mas o freguês voltou a sentar ao bar, no banco costumaz. Sua expressão distante em nada modificara. Na ausência de Julianna, que não sairia mais do seu quarto naquela noite, o garçom não conteve a indiscrição e perguntou-lhe o que o fizera mudar de ideia. De início o homem não respondeu, apontando para a vodca. Enquanto lhe servia uma dose mais generosa do que as normas permitiam, o funcionário repetiu a pergunta. O cliente continuou calado. Teve então que insistir, precisava saber qual argumento tão irrefutável Julianna usara ao lhe falar ao ouvido, sem mais se importar em não aborrecer o homem ou se preocupar com a expressão de reprovação do Dr. Canivete, porque a curiosidade já superava qualquer risco. Só quase pela manhã arriscou um palpite:

— Por um acaso ela não cobrou o programa?

Ele permaneceu imóvel, saboreando a tequila.

— Ela trabalhou para você de graça? — insistiu o garçom — Pode dizer, eu não vou contar a ninguém.

E o homem, limpando os lábios com a língua, observava compenetrado as últimas gotas da bebida no fundo do copo inclinado.

Até que o rapaz teve um insight e perguntou bem baixinho, ainda incrédulo: — Foi ela que pagou? — e concluiu, pausadamente — Ela pagou você...

Ele finalmente lhe voltou os olhos escuros e sorriu sem expor os dentes, dando logo depois a golada final. E saiu, sem mais retorno, sem mais notícias, sem deixar contatos para follow-up. Deixou Paulinha se sentindo traída mas atormentada por aquele estranho sentimento de adultério sempre que atendia outros homens, a diminuir sua competitividade em relação às concorrentes da casa. Deixou Cani furioso pela perda do seu melhor cliente do balcão. E deixou Julianna com a certeza de que havia sido vítima de uma espécie de golpe comercial, mas que o dumping que utilizara para sobreviver, embora eticamente questionável, fora bem sucedido em conter danos e em mantê-la no topo desse cenário inescrupuloso que é o mundo dos negócios.
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