“Ceci n'est pas une pipe.”
(René Magritte)
Despertou sob sensação de sonho desassossegado. Haveria esquecido que convidara todos para uma festa em seu apartamento? Era um curioso devaneio onírico recorrente que tinha em noites aleatórias, fruto de sua preocupação de ter domínio sobre todas as coisas. Agora, a voz da mãe, rosto sobre ela a dizer bom dia assim que abriu os olhos à semipenumbra do quarto, multiplicava-se no alarido de múltiplas origens que em eco lhe tomava a casa. Você dorme em demasia, menina, reclamava a matrona enquanto ela improvisava afobada uma roupa que a permitisse sair dali sem causar impressão muito negativa nos convivas.
Levantou-se e logo pôs o tapa-olho que diuturnamente lhe cobria a pupila esquerda, a qual sofria um defeito agudo que a mantinha dilatada mesmo sob estímulo de muita luz, fenômeno com diagnóstico até então inconclusivo mas causador de incômodos em espaços iluminados e de resultado estético pouco satisfatório. Ainda se vestia quando seu professor de francês entrou no quarto, cobrando-lhe as lições e dizendo, ao sentar à beira de sua cama com expressão decepcionada, que em cinco minutos gostaria que conversassem sobre o último teste escrito que fizera, se ela estivesse disponível. Que audácia, era quase um assédio! Ela parecia disponível? Olhou para si com o olho direito que lhe sobrara, cobrindo-se com o lençol, embaralhando-se para se vestir ao mesmo tempo em que protegia as curvas do corpo dos presumíveis olhares que, porém, o mestre não lhe lançava, mantendo-se com fisionomia inerte e perdida desde que dissera a última palavra. Ainda assim, não poderia ele aguardar que ela se aprontasse? Como a mãe, sempre tão moralista e recatada, concedia a impertinência? Já que estava em sua casa e certamente havia permitido a entrada daquelas pessoas, podia ela ao menos impedir que lhe invadissem o espaço mais íntimo.
Saiu do quarto na esperança de passar ao banheiro sem cruzar com ninguém, bastavam-lhe afinal apenas dois ou três passos, mas se deparou com um corredor abarrotado de gente. Não houve tempo de as identificar porque a secretária de sua dentista, logo ela, interrompeu seu percurso, antepondo-se entre a moça e a porta do lavabo, pedindo que a presença na consulta da semana seguinte fosse confirmada. Entrou com a funcionária no banheiro, como se ela desejasse fiscalizar sua escovação dentária para entregar relatório à chefe. No lugar, entretanto, um homem que ela na verdade nem mesmo conhecia dizia coisas desconexas enquanto urinava, o que a obrigou a recuar o rosto e sair apressada.
Nunca pensou que seu corredor fosse tão longo, demorou vários minutos para vencê-lo, progredindo com esforço, condensando-se em zigue-zague entre as pessoas. A maioria nem distinguia quem fosse, intrigando-se com o fato de que boa parte desses convivas exibia expressões hostis, especialmente aqueles cuja identidade não se discernia, o que a assustava mesmo que ninguém olhasse de forma direta para ela. Na verdade, em alguns casos, ficava-lhe o pressentimento, decerto fruto da sua própria desatenção, de que algumas feições estariam a se repetir, numa espécie de linha de produção de uma humanidade média.
Alcançar o local principal do apartamento, espaço multiuso de conceito aberto que conjugava cozinha e sala e gozava de pé direito mais alto do que o restante do imóvel, com o teto abobadado, aplacava a tensão claustrofóbica a que ela se submetera no corredor. À sua direita, estava o mobiliário do espaço de convívio; à esquerda, ela voltou mais a cabeça para divisar com o olho funcional a ilha de eletrodomésticos da cozinha que servia também de mesa para refeições e armários inferiores; limitando os dois ambientes, em frente a ela, imagens rupestres pintadas espalhavam da parede ao teto cavalos, bovinos e bisões, todos em posição de movimento, alguns com o ventre crescido, culminando no jogo de manchas azuis e vermelhas que representavam uma nebulosa no pico da abóbada. Estar finalmente no grande cômodo foi como deixar uma densa floresta e chegar a uma clareira, vencer um labirinto de galerias rochosas até encontrar não a saída das cavernas mas uma rotunda natural mais ampla ou o seu átrio ou vestíbulo inicial.
Potencializando o seu alívio, uma presença conhecida e mais amistosa a interpelou: Kiara! Era Bruño. Que bom vê-la!, disse, mas sem abraçá-la. O pessoal já está aqui para a reunião. Kiara observou então quase toda a sua equipe de vendas amontoada em banquetas ao redor da ilha da cozinha, enquanto alguns sobravam pela sala, no sofá ou em puffs. Bruño, o seu braço direito na empresa, olhava ansioso para a chefe, num misto de respeito e devoção, com admiração em vários níveis. A pesquisa rápida que lançara à sala, contudo, fizera Kiara intuir a presença de outra pessoa, estranha a esse grupo, a qual se aproximou ao vê-la. Para se desvencilhar, ela então pediu que Bruño iniciasse a reunião em seu lugar, como fazia frequentemente, antes de, com certa ansiedade, escapulir ao encontro do outro homem.
Dâniel trazia-lhe um croissant de presunto recém-assado, oferecido com simpatia, sob uma piscadela de olhos, desjejum que ela sorriu ao aceitar. Quando convidara Bruño e Dâniel para a mesma reunião em sua casa? Era potencialmente desastroso. O primeiro era tão prestativo no trabalho quanto o segundo se mostrava no espaço acadêmico, voluntariando-se a auxiliar a moça nos seus um pouco tardios estudos universitários, fazendo questão de se inscrever sempre nas mesmas disciplinas que ela, a fim de nunca a desamparar. Os préstimos de ambos não chegavam de graça, é claro, mas era como se assim fosse, porque as promessas veladas que pequenos flertes cotidianos sugeriam nunca se concretizavam, especialmente em razão da menção estratégica que ela fazia do namorado ciumento, para manter os agrados sem grandes riscos de avanços indesejáveis. Artem, em verdade, não existia, mas lhe servia de escudo sempre que conveniente, quando seus jogos de sedução podiam fugir do controle. O homem fictício por quem ela se dizia apaixonada, a ponto de não conseguir encerrar o relacionamento que afinal, segundo suas confidências, por vezes lhe provocaria alguns constrangimentos em razão das limitações intelectuais do desditoso consorte, era concebido como possessivo, embora nunca violento (ao menos não com ela, observação que sempre parecia ocultar uma ameaça subjacente), mantendo Bruño e Dâniel nem tão próximos que não se mantivessem em segurança nem tão distantes que perdessem a esperança e a conveniência para a moça.
Eu precisava que você fizesse uma leitura rápida de nosso trabalho de Estratégias de Negociação, para revisar o texto final, solicitou Dâniel de um lado; Posso apresentar no início da reunião o resultado do ranking de vendas dos colaboradores na última quinzena, sugeriu Bruño simultaneamente, ao se reaproximar. Ela olhava para o primeiro e para o segundo e enxergava um de cada vez, mas não entendia por que os dois rapazes não se viam, era como se estivesse sozinha com um ou outro naquela sala — e não sabia de que maneira os responder. No intuito de sustentar cativos os dois amigos enamorados nos subtextos das relações, enlaçados nessa vicissitude cruel de acessos e dispersões sentimentais, Kiara nunca mencionava esse para aquele e vice-versa, a fim de que não perdessem a ilusão de serem únicos na sua posição auspiciosa de virtual substituto do vilão imaginário Artem, que insistente mantinha a mocinha no domínio de seus braços — braços fortes, conforme ela costumava destacar, para sufocar quaisquer pretensões mais atrevidas dos pretendentes ao lhes diminuir alguma autoestima.
Bruño a ajudava no trabalho, cumprindo muitas vezes as suas obrigações embora ela gozasse do salário do cargo de confiança e ele recebesse as migalhas de todos os demais, para que ela pudesse dar conta do término dos seus estudos, que afinal a catapultariam para proventos ainda maiores, criando nele sempre a expectativa de que pudesse herdar seu atual cargo, embora não fosse essa a sua maior motivação. Por seu turno, Dâniel colaborava com Kiara no curso universitário, copiando para ela livros e apostilas, providenciando fichamentos que lhe facilitassem as leituras, efetuando sozinho tarefas a serem desenvolvidas em conjunto e mesmo forjando sua presença em eventuais ausências em aulas e palestras, tudo em razão da crença de que o emprego da moça lhe consumia imenso e sempre na espreita de que em algum momento conseguiriam agendar aquela tarde de sábado de estudos juntos em sua casa, data sempre lamentavelmente adiada, em geral por ação atribuída a Artem. Caso um tomasse ciência do outro, suas solicitações perdiam algum apelo, mesmo que ela mantivesse a confiança no poder de sedução que sobre os dois exercia.
Kiara?!, eles interpelaram quase ao mesmo tempo. Eu estou de acordo, disse ela um pouco titubeante, afastando-se rápido para não precisar dizer mais do que isso, já que os assuntos eram muito distintos e somente na economia verbal era possível responder de modo que cada um, sem estranhamento, tomasse para si as palavras. Ela, então, dirigiu-se à janela da sala de estar — buscava ar, rarefeito no apartamento lotado. No meio do caminho, alguém tentou contar-lhe uma piada, mas ela deixou de ouvir logo nos primeiros segundos e seguiu movimento. Do seu andar alto, o último do prédio, observavam-se várias e amplas ruas da vasta cidade. Continuavam totalmente desertas como estavam havia anos, enquanto, por algum motivo, seu pequeno lar abarrotava-se de todos os seus conhecidos e mesmo alguns (se não muitos) desconhecidos. Um grande pássaro plainou com imóveis asas muito abertas perto de sua janela, plumagem negra, cabeça branca, bico arredondado, garras salientes, migrando para o alto do edifício e desaparecendo de seu ângulo de visão. Não sabia se era uma águia ou um gavião; causava espanto a sua presença porque, em períodos anteriores bem recentes, ela só via pelo bairro nojentos pombos aos montes que arrulhavam alto em sua janela, os quais no entanto rareavam nos últimos tempos.
Sua nota no teste foi decepcionante, era como se o professor de francês tivesse se materializado ao seu lado, cotovelo apoiado no parapeito de pedra fria. Um vídeo surgiu na parede da sala, ela nem mesmo sabia de onde se projetava. Algumas pessoas atentaram para ele mas a maior parte dos convivas o ignorou. Meu computador apagou e acho que perdi o trabalho de Relações Interpessoais, revelou Dâniel. Luzia disse de novo que a contabilidade de seu volume de vendas está errada, contou Bruño. Não posso fazer nada sobre isso, ela falou, impaciente, mas sorrindo (antes, gargalhando) para disfarçar o mau humor. Na imagem em movimento na parede, voava a mesma águia (ou gavião) que ela vira rodear o prédio. Você já acordou, minha filha?, questionou a mãe. Está confirmada a consulta, Kiara?, quis saber novamente a secretária da dentista. Ao redor da pessoa que lhe tentara contar a piada, muita gente ria, todas apresentando a mesma expressão, como numa claque coreografada, cabeça tombada para o lado, boca muito aberta, lágrimas involuntárias a escorrer dos olhos semifechados. E repentinamente uma aula de treinamento funcional iniciou-se em sua sala, sob a empolgação de um educador físico. Ela tentou desviar das pessoas que deitadas se espalhavam pelo cômodo às dezenas, mas, obrigada a fazer parte do evento, viu-se de repente ao chão. Foi quando se encaramujou em posição fetal e, longamente, gritou, de olho cerrado, um grito que abalou as paredes do apartamento e causou uma fissura na abóbada do teto, no centro da explosão da matéria estelar da nebulosa, a partir da qual era possível ver o gavião (ou águia) passar esporadicamente contra o céu azul, de um lado para o outro, sobre o edifício.
Ao abrir os olhos, percebeu que o seu tampão ocular havia desaparecido e que a pupila esquerda parecia funcionar muito bem sob a luz solar que invadia a fenda do teto, permitindo-lhe uma visão panorâmica da sala. Todos haviam desaparecido, exceto Dâniel e Bruño, que, também de olhos abertos mas como se fechados estivessem, procuravam-na com insistência, chamando seu nome pela sala, sem se darem conta da presença um do outro, as vozes a alcançarem frequência cada vez mais aguda e a ecoarem até se perderem na abertura da abóbada, enquanto seus corpos pareciam diminuir e mesmo perder feições humanas.
Foi então que a campainha tocou e o apartamento viu-se tomado por aquele som que não se manifestava há tantos anos. Ela, entre surpresa e curiosa, levantou-se e caminhou em direção à porta. Em um enfeite espelhado suspenso no portal, observou os próprios olhos e viu que agora a pupila direita estava, na verdade, tão dilatada quanto a vizinha, o que era esteticamente mais interessante, trazendo equilíbrio às suas feições. Abriu, afinal, a porta. Do lado de fora, um homem que esperava entrou de imediato, sem cerimônias, sem mesmo perceber a sua presença. Tratava-se de um rapaz alto, forte e sisudo que Kiara tinha a certeza de que nunca tinha visto, não obstante o reconhecesse: era, sem dúvidas, Artem.
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